sábado, 11 de fevereiro de 2017

Português, indígena e negro

* Por Oliveira Lima


Como nenhum dos donatários tivesse os meios necessários para beneficiar nem a centésima parte da terra que podiam tomar para si, o maior empenho de todos fora o de angariar moradores que levassem capitais, e que se propusessem a receber terras de sesmarias e a cultivá-las. Os artigos de exportação que primeiro mais se cultivaram foram o arroz e o açúcar.

Vendo-se em pequeno número e tão desamparados, os cristãos em cada uma das capitanias começaram por afazer-se a muitos usos dos bárbaros, nos objetos domésticos e de primeira necessidade. Destes adotaram o uso do tabaco de fumo, e com tanto amor que se tornou geral, e passou à Europa, e já no século seguinte constituía um dos ramos da indústria e produção do Brasil. quis a igreja opor-se a este uso, declarando-o rito gentílico; e prelado houve que chegou a proibi-lo, com pena de excomunhão, dando alguma vez aos que fumavam na igreja de penitência o trazerem os pitimbaus ou grandes charutos ao pescoço; mas tudo foi debalde.

Dos mesmos bárbaros adotarem os colonos o uso do milho e da mandioca, e todos os meios de cultivar e preparar estas duas substâncias alimentícias, bem como as abóboras, o feijão, etc. Deles, e não de Portugal, foi tomado o sistema, ainda hoje seguido geralmente pelos nossos lavradores, de roçar e derrubar, cada dois ou três anos, novos matos virgens, queimá-los, encoivará-los, e por fim semeá-los, se vão apodrecendo, continuando a estrumar a terra, mas dificultando o passo aos trabalhadores, e roubando às sementeiras muita superfície. Em Portugal não se roçavam matas para semear a terra de legumes: as matas era raras, e, por conseguinte, uma riqueza por si sós. O próprio vocábulo coivara, do qual tomamos o verbo encoivarar, é uma voz tupi, derivada de cog, roça.

Dos índios adotaram também o uso da farinha de mandioca, bem como o das folhas da planta ou maniçoba, como hortaliça; para o quê usaram também das folhas do taiá ou taiobas, e dos olhos tenros das aboboreiras ou jerimuns, cujos guisados chamaram cambuquira. Além disso cultivavam os carás e inhames, e ainda mais o excelente aipim ou mandioca-doce, comido assado simplesmente ao borralho e sem mais preparativos. Dos índios adotavam os nossos o pirão. Mingau é também nome dos tupis, que chamavam ao caldo migã.

As bananas-da-terra foram também um dos primeiros alimentos que mais se generalizou, enquanto da ilha africana de São Tomé não se transplantaram as que por isso ainda hoje têm este nome. Alguns pés desta planta, ao abrigo da choupana ou tujupar de um colono, lhe asseguravam a subsistência sem o trabalho; pois que, como diz um contemporâneo, parece que a bananeira, que alguns crêem ser a figueira do Paraíso terreal, foi a planta dada ao homem para o deixar falhar ao preceito de ganhar o sustento com o suor de seu rosto. O vocábulo banana é africano: musa lhe chamavam os árabes; pacoba os nossos índios.

Na primitiva construção das casas, em vez de pregadura se adotou o cipó-imbé, para segurar as ripas, conforme usavam os índios. Também se adotaram as próprias formas de suas cântaras ou vasos de barro, para trazerem água do rio ou das fontes; e em outros artigos domésticos foi a adoção dos usos tão excessiva que até com eles vieram os próprios vocábulos de língua tupi, os quais para sempre no Brasil acusarão a sua procedência, como dissemos, acerca dos árabes na Espanha. São também puramente indígenas os vocábulos xará, guapiara, apicum, massapé, xerapi, coivara, pipoca, tipoia, picumã, chulé, ché, teteia, tapejara, pixuma, tocaiar, coroca, catapora, canhambola, pixaim, cauira, pitiú, garajau e muitos outros.

Dos tupis adotaram os nossos quase tudo quanto respeitava ao barquejar, bem como à pesca e até à caça.

(História geral do Brasil)


* Historiador e membro da Academia Brasileira de Letras.

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