sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Momento literário


* Por Raimundo Magalhães Junior


(...) Sobre o momento literário, entendia Sílvio Romero que não havia decadência, mas uma simples parada. Além dele, João do Rio ouviu quatorze outros membros da Academia Brasileira Letras: Olavo Bilac, João Ribeiro, Filinto de Almeida, Coelho Neto, Medeiros e Albuquerque, Afonso Celso, Silva Ramos, Garcia Redondo, Guimarães Passos, Rodrigo Octavio, Inglês de Sousa, Raimundo Correia. Bilac foi procurado pessoalmente, às oito horas da manhã, na sua casa, cujo endereço o repórter se absteve de mencionar, decerto para evitar o assédio de importunos. Descreveu a casa com tais requintes - cortinas cor de leite e sanefas de veludo cor de mosto, colchas de seda cor d’oiro, antiga tapeçaria francesa, telas assinadas por grandes nomes, kakemonos do Japão, vastos divãs turcos, jarras de porcelana e bibelots, numa exibição de fausto e conforto tão ostensiva, que o poeta logo reclamaria; " - Como você foi inventar todo aquele luxo!?"4 Coelho Neto, também procurado em pessoa, em sua casa, no momento escrevia uma peça para a companhia Lucinda Simões e Cristiano de Sousa. Confessou-se autor de obras fesceninas e afirmou ter escrito de improviso, como folhetim, "sem psicologias" o romance O Rajá de Pendjab. Era um "trapista do trabalho, a bête de somme dos franceses", mourejando, por gosto, "como os servos da gleba", porque "o artista não é o zoilo das confeitarias à cata de jantar..." João do Rio, querendo agradar ao entrevistado, diz: "Coelho Neto é no Brasil o que Rudyard Kipling é na Inglaterra - o homem que joga com maior número de vocábulos. Alguém já lhe calculou o léxico em vinte mil palavras." Como Sílvio Romero, Coelho Neto, que já publicara cinqüenta volumes, declara que "a todos prezo".

Dessas entrevistas com acadêmicos, a que revela maior pobreza mental é a de Guimarães Passos, autor dos Versos de um simples, das Horas mortas e, por fim, de um Dicionário de rimas, ampliado por Olavo Bilac e, aliás, não mencionado por João do Rio. O poeta boêmio promete pensar sobre o inquérito, acha "muito difícil" dar-lhe resposta, mas acaba por confessar que leu, ainda na escola, o satírico português Nicolau Tolentino. Lera, depois, Camões e Bocage e, finalmente, começara a estudar "o grande padre Antônio Vieira". Chegara a saber-lhe sermões inteiros de cor. Tinha quatro volumes publicados, com críticas elogiosas e prefácios célebres, de Araripe Júnior. De sua obra, gostava da metade, de que o público não gosta". Quanto ao momento literário, era um período absolutamente estacionário:

"Não há lutas de escolas, não há mesmo escolas novas, poesia de ação e outras histórias. Ainda estamos com os que os traquinas de café chamam os velhos - Aluísio Azevedo no romance, Bilac e Alberto de Oliveira no verso. Literatura nos Estados? Uma blague. Não é possível. O jornalismo? Péssimo para os escritores. O jornalismo é o balcão. Não pode haver arte onde há troços; não pode haver arte onde o trabalho é dispersivo."

João do Rio varria a testada de seu matutino: "E, abrindo os braços, Sebastião de Guimarães Passos conclui uma terrível catilinária contra o jornal. Ai de nós!" O poeta, conhecido então como o Passos-Miséria, era um dos náufragos da velha imprensa precária e boêmia que fizera a abolição e a República. Não tardaria muito a morrer tuberculoso, mas teria o requinte de ir morrer em Paris. E o seu elogio acadêmico seria feito pelo seu jovem entrevistador de O Momento Literário.

Algumas figuras novas, que o grande repórter arrolou, perderam de todo o significado para o leitor dos nossos dias. É o caso de um Curvelo de Mendonça, autor do "justamente esquecido romance Regeneração" (ele mesmo diz isso ao responder a João do Rio, numa carta tão prolixa quando enfadonha). É o caso de um maníaco do ocultismo, Magnus Sondhal, que já figurara em As religiões no Rio; de um Pedro do Couto, de um Elísio de Carvalho, de um Fábio Luz, que nunca ultrapassaram as fronteiras da mediocridade. João do Rio entrevistou ainda outros autores, que chegariam, um dia, a pertencer à Academia Brasileira de Letras, aliás atacada, com certa veemência, por entrevistados como Frota Pessoa e, mais ainda, por Félix Pacheco. Este, que se reconciliara com João do Rio, então um moço extrovertido, bem longe da figura conselheiral que dirigia o Jornal do Commercio, foi deputado, senador e ministro das Relações Exteriores. Em alguns pontos da entrevista, ele zomba de si mesmo e dos antigos ataques de João do Rio. Diz que estreara nas letras com o livro de versos Chicotadas "um pouco do gênero das Vergastas, do meu cordial inimigo, o Dr. Lúcio de Mendonça, que aliás nunca tive a fortuna de ler". E continuava:

"Fiz depois O publicista da Regência, trabalho de jornal, com dia certo para ser publicado. Releio às vezes o volume e, palavra de honra!, não desisto de tirar-lhe algumas infantilidades, retocá-lo, ampliá-lo e fazer dele uma obra, quando mais não seja, em homenagem aos reparos e à sarabanda tremendíssima de um certo jornalista meu amigo, que viera das mesas do Café Paris e irrompera desabusado pela Cidade do Rio, numa fulgurante promessa de altos vôos..."

Havia também uma alusão ao livro de versos igualmente atacado por Paulo Barreto:

"Em 1901 publiquei Via crucis, que não é positivamente uma obra. O meu romantismo ficara na coleção do Debate, sepultado juntamente com um amor que era feito de mel rosado e borboletas. A crítica aplaudiu o volume, mas, em meio desse coro de bênçãos, houve um berro que me desconcertou um pouco. Com uma ingenuidade de Calino meditei na razão do necrológio e vi que o homem não deixava de ter razão; o contrapeso do assobio é necessário para que as palmas não embriaguem...

O fato é que a Via crucis não era sem falha, e tanto assim que depois de publicada, ainda emendei muita coisa, como terá ocasião de ver na edição definitiva."

Eram satisfações dadas, de público, ao antigo adversário. Félix Pacheco chamava a Academia Brasileira de Letras "a dos alhos com bugalhos." Zombava de Medeiros e Albuquerque, então diretor da Instrução Pública, dizendo que "ele faria obra de caridade se olhasse um pouco para essa pobrezita. Porque com o Zé Veríssimo, positivamente, a coisa não vai lá das pernas! O homem é dos tais que não enxergam uma polegada adiante do nariz." Tinha frases que se ajustavam tanto ao Paulo Barreto da Cidade do Rio, como a ele próprio:

"No Rio, as coisas são assim. Quem deseja vencer, deverá começar demolindo, porque, no fim de contas, só essa fúria iconoclasta pode ter a virtude de arrombar a porta e facilitar a entrada. Fora disso, o que resta é apenas a docilidade passiva, o respeito aos medalhões, a subserviência miserável e ignóbil - elemento seguro e infalível para a subida fácil."

Conclusão que não deixa de ser um tanto contraditória. Mas a petulância de Félix Pacheco chegava ao cúmulo quando, depois de se dizer leitor de Fagundes Varela, seu poeta predileto em criança; de Lamartine, Hugo, Richepin, Luís Delfino, Baudelaire, Rimbaud, Regnier, Quental, Francisca Júlia, Cruz e Sousa e Carlos Dias Fernandes, acrescentava:

"Para desencargo de consciência devo acrescentar que a despeito de minha boa vontade, ainda não consegui ler nem Gonçalves Dias nem Machado de Assis..."

Ataque ainda mais forte à Academia foi o do jovem crítico Frota Pessoa, que dizia tratar-se de:

"um mito evocativo da Academia dos Seletos, ao qual o Sr. Seabra5 acaba de insuflar um pouco de realidade, fornecendo-lhe aposento, luz e criado, à custa da nação, para que, ante os seus pares atônitos, o Sr. Lúcio de Mendonça reviva e perpetue a imortal querela com o Sr. G. Redondo sobre a nacionalidade de Gonçalves Crespo. Mas a própria Academia de Letras, considere o meu douto amigo, nunca passou - tal a melancolia destes tempos - de uma sociedade funerária, com o exclusivo escopo de prantear os defuntos imortais e de receber novos imortais candidatos à vida terrena. Nela se entra pura e simplesmente para adquirir direito a uma morte carpida entre frases retumbantes e descompassados encômios. Nunca, jamais, nenhum imortal, ali penetrante, fez, no seu caráter de imortal, outra coisa que não partir para a bem-aventurança. E como o meu arguto amigo, com a sua incomparável perspicácia, deve ter ponderado, de si para si, isto é macabro."

Outros dos entrevistados são Afrânio Peixoto (ainda usando o nome de Júlio Afrânio), Laudelino Freire, Luís Edmundo, Nestor Victor, Osório Duque-Estrada, Mário Pederneiras, Rocha Pombo, Sousa Bandeira, Alberto Ramos, Gustavo Santiago, o padre José Severiano de Resende (que logo deixaria a batina) e o obscuro Augusto Franco. Convidado, também deixaria de responder Emílio de Meneses. Mas João do Rio não explica porque muitos outros nomes em evidência foram omitidos: Vicente de Carvalho, Euclides da Cunha, Valdomiro Silveira, Luís Murat, Afonso Arinos, Capistrano de Abreu, Rui Barbosa, Lúcio e Salvador de Mendonça, Oliveira Lima, Carlos de Laet, Alberto Torres, Alcindo Guanabara, Tobias Monteiro, etc. Em alguns casos, talvez tivesse havido impugnações de Medeiros e Albuquerque, ou do próprio João do Rio. De qualquer forma, embora com muitas lacunas, o livro O momento literário, que resultou desse inquérito, ficaria como um documento muito mais expressivo do ambiente intelectual brasileiro na primeira década deste século e da mentalidade nele dominante. Sua divulgação em volume teria, entretanto, que esperar mais quatro anos.

Pouco depois da publicação dessas reportagens, Paulo Barreto, sequioso de notoriedade, julgou-se em condições de pertencer à Academia. A 27 de dezembro de 1905, morreu Pedro Rabelo. Era o nono, dentre os fundadores daquela instituição, a desaparecer. E Paulo resolveu candidatar-se à vaga. Tinha, então, vinte e quatro anos. E era autor de um só livro. Mas a Academia tivera entre os fundadores um moço de apenas vinte e cinco: Carlos Magalhães de Azeredo, também autor de um único livro: Procelárias. E Graça Aranha figurara entre os quarenta primeiros imortais com o romance Canaã ainda inédito.6 Desejoso de afirmar-se e certo de que fizera sólidas amizades entre os acadêmicos, ao entrevistar quatorze deles no recente inquérito literário, enviou a carta formal de inscrição e, em seguida, dirigiu-se particularmente a Machado de Assis:

"Meu ilustre Mestre. - Na carta dirigida ao Presidente da Academia Brasileira de Letras, dei parte do meu ousado desejo de pertencer a tão ilustre corporação. É um desejo excessivo, é uma pretensão exagerada. E, por isso, talvez, sinto um invencível acanhamento em solicitar o seu voto. Há votos que são consagrações e que orgulham por toda a vida... Não chego a pedir, mostro apenas a quanto se atreve a ambição teimosa... Que o Mestre venerando perdoe ao mais humilde de seus admiradores - Paulo Barreto.7

Inscreveu-se, na mesma vaga, o velho advogado e antigo deputado geral do Império Heráclito Graça, estudioso da língua e, além do mais, tio de Graça Aranha. Diz-se que, pouco antes do pleito, D. Florência Coelho Barreto surgira na Livraria Garnier e perguntara a Machado de Assis o que pensava de seu filho. E Machado teria respondido, com uma ponta de malícia:. "Oh, mi-minha senhora! Mas o seu fi-filho é o meu mestre..." Com a proximidade da eleição, João do Rio, extremamente nervoso, seguiu para Poços de Caldas e dessa estação de águas mandou uma série de crônicas para o seu jornal. Mas, antes de partir, escreveu de novo ao Presidente da Academia:

"Sr. Machado de Assis - Como o meu estado de moléstia força-me a deixar o Rio e a eleição da Academia deve ser realizada esta semana, tomo a liberdade de lhe pedir guardar estes três votos para juntar aos outros que talvez no dia da eleição me venham a caber por sorte. Os votos são dos meus ilustres confrades os acadêmicos Drs. Clóvis Beviláqua, Augusto de Lima e Garcia Redondo. Agradecendo antecipadamente a sua boa vontade, seu admirador, venerador - Paulo Barreto".

O jovem candidato não se enganara em suas previsões. Na eleição, realizada a 30 de julho de 1906, realmente teve outros votos, elevando-se o total a oito. A vitória foi do antigo parlamentar e jurista Heráclito Graça, autor do livro intitulado Fatos da Linguagem. Ao jovem de vinte e cinco anos "os imortais" preferiram o medalhão de sessenta e nove anos. Foi, aliás, como se ninguém tivesse sido eleito e a cadeira permanecesse vaga. Heráclito Graça tomou posse por uma simples carta, eximindo-se até mesmo de fazer o elogio de seu antecessor. E nunca deu um pio nas sessões acadêmicas, até morrer, em 1914, aos setenta e sete anos. Sua única contribuição foi um silêncio de oito anos... É provável que tenham figurado, entre os votantes de João do Rio, alguns dos que ele entrevistara e que com ele conviviam mais intimamente nas redações dos jornais: Olavo Bilac, Medeiros e Albuquerque, Coelho Neto, Guimarães Passos, etc. Heráclito Graça, eleito com dezessete votos, tivera uma maioria de apenas nove sufrágios. E Paulo Barreto, ainda que derrotado, ficou bastante animado com a votação obtida.

1. Entenda-se: Secretaria de Estado da Viação e Obras Públicas, onde Machado de Assis era então o diretor-geral de Contabilidade. A versão correta;

2. De Artur Azevedo, companheiro de repartição de Machado saiu em O Século a 7 de outubro de 1908 e foi por nós transcrita em Machado de Assis, Funcionário Público (2a edição).

3. J. P. Xavier Pinheiro foi autor de uma tradução integral da Divina Comédia.

4. Ramo de Loiro, página 176.

5. O Ministro do Interior, José Joaquirm Seabra, mandara alojar a Academia num prédio próprio da União, além de lhe conceder franquia postal.

6. O famoso romance de Graça Aranha só sairia em 1902.

7. O original pertence ao arquivo da Academia Brasileira de Letras.

(A vida vertiginosa de João do Rio, 1978).

*  Jornalista, biógrafo e teatrólogo. Membro da Academia Brasileira de Letras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário