segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Carnaval

* Por Debora Bottcher


"Quanto riso! Oh! Quanta alegria!
Mais de mil palhaços no salão..."
(Trecho de 'Máscara Negra', de Zé Kéti)


Quase todo mundo com mais de 30 anos teve uma infância e/ou adolescência que vibrou ao som das marchinhas de carnaval.

Para mim, a Festa do Rei Momo sempre teve um inexplicável ar de melancolia. Máscaras e sombras desfilando, abrindo passagem para a orgia. A nudez vestindo-se de luz e purpurina, brilhando e despertando sensações – aquelas que ficam guardadas nos sótãos da alma, o ano inteiro escondidas... Fantasias...

Atrás da maquiagem, dos véus e das cores, pode-se ser quem quiser: o palhaço, a bailarina, o pirata, a feiticeira, o índio, a cigana, o super-homem, a fada madrinha. Cada um vende seu sonho e vive sua loucura, despido de cotidiano, alheio à preocupação.

Dos salões de baile às avenidas, a mentira é soberana: ela governa os cinco dias do ano em que tudo é permitido. A quarta-feira - e só depois do meio-dia - é que aciona o botão da realidade novamente.

Eu me lembro das nossas noites de carnaval. Meu pai, diretor de um clube de elite em Campinas, tinha mesa especial reservada. Vestida a caráter - e isso quer dizer Odalisca, Havaiana, Bruxa ou Mulher-Gato -, eu cruzava a entrada principal de braço dado com ele, muito antes da idade permitida de fato, para freqüentar os bailes luminosos.

Acho que era mais nisso que residia o encanto pra mim: burlar as regras. Porque, na verdade, não posso dizer que efetivamente me divertia. A música muito alta, depois de umas duas horas, começava a me incomodar; o empurra-empurra também não me deixava confortável, assim como os excessos (de bebidas e afins).

Tudo isso ia me deixando um tanto cansada. Eu me sentava então num dos degraus da imensa arquibancada de concreto, bem lá no alto, para observar a desordem instalada: rostos borrados, corpos suados, adereços em frangalhos. A beleza inicial desvanecida, perdida entre confetes e serpentinas.

De longe eu avistava meu pai tentando me encontrar no meio da confusão. Peguei-me pensando agora, enquanto escrevo, se em algum momento ele adivinhava que eu não estava lá - já que quando eu retornava para junto dele, nunca estava desgrenhada como a multidão. Às vezes, dançávamos juntos no espaço próximo às mesas: isso era bom - seu riso aberto, a alegria nos enlaçando.

Mas eu ainda era jovem (ia completar 18 anos) quando o carnaval perdeu completamente o glamour e eu não quis mais ir aos bailes. Meu pai, que era muito festeiro, tentou me convencer a mudar de idéia e se entristeceu um pouco quando não me dissuadiu - e eu só o acompanhei mais uma única vez depois disso, em 1998, quando ele, já em fase terminal, quis dar uma última olhada no que chamava de 'a maior festa do ano'.

Fato é que o tom da amargura que me invadia desde os primeiros tempos, foi se agigantando e eu me dei conta de que não havia fantasia capaz de burlar aquela desencantada emoção. As cinzas da quarta-feira me consumiam muito antes de tudo começar e eu pensei que estar quieta durante aqueles dias, era o jeito certo de acalmar o interior melancólico sem razão.

Talvez tenha sido um certo Pierrot. Talvez a minha Máscara Negra. Quem sabe uma enrustida saudade, um beijo que nunca aconteceu. Ou a lágrima que ficou engasgada e assim desmanchou de vez a ilusão.


* Poetisa e escritora.

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