terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Carnaval

* Por Antonio Lobo Antunes


O Carnaval eram homens vestidos de mulher, de lenço na cabeça, muito rouge na cara e enchumaces a fingir de peito, aos encontrões uns aos outros à porta das tabernas. Eram serpentinas atiradas das varandas por meninas solitárias mascaradas de espanholas, serpentinas que ficavam março, abril, maio a desbotar nos ramos das árvores até a chuva as levar. Era eu na matiné do São Luís, campino pindérico enrolado de vergonha no fundo de um camarote, a olhar de longe príncipes, fadas e polícias (as três únicas profissões que à época achava sublimes e ainda agora, no mais secreto de mim, continuo a achar) que se jogavam saquinhos, atafulhavam a boca uns dos outros de papéis coloridos, iniciavam namoros de rasteiras e puxões de cabelo (formas de dizer amo-te aos oito anos antes de complicarmos tudo com flores e rapapés) e desfilavam no palco, aplaudidíssimos, a receberem prêmios de bicicletas e caixas de bombons enquanto eu, campino reles, os seguia roído de admiração invejosa, lutando contra as lágrimas a chupar o polegar.

No Carnaval dava-me melancolicamente conta da minha condição terrestre: num mundo povoado de piratas-da-perna-de-pau, de mosqueteiros, de generais com bigodes de rolha queimada e de Brancas de Neve sem anões, a chamarem pela madrinha aos gritos, eu permanecia o mesmo triste futrica de joelhos esfolados desejoso de assassinar o universo com a pistola de água comprada na capelista que se avariava ao segundo jato, adereço inútil cuja única vantagem consistia em enfurecer a minha mãe (— Não quero essa porcaria aqui em casa) enxotando-me para o jardim onde me acocorava num degrau, de revólver pendurado na mão como um Al Capone sem emprego, a olhar a coluna de formigas que subia ao comprido de uma racha de parede indiferente à minha desdita sem remédio.

Avós desvanecidos passavam na Estrada de Benfica a caminho da Foto Águia de Ouro, tangendo noivas minhotas, Zorros de espada e mascarilha, imperadores romanos e lavadeiras de Caneças em miniatura, comigo à janela, com o bibe de todos os dias, a engolir as lágrimas de garganta apertada. Num bairro de coroas de papel e túnicas douradas, com os homens vestidos de mulher a vomitarem o tinto no passeio, sentia-me insignificante e supérfluo: ninguém me admirava, se extasiava, se interessava. A cozinheira, com dó de mim (as cozinheiras eram seres compassivos que tentavam levantar-me o moral deixando-me rapar o fundo das tigelas de mousse) vinha anunciar-me que estava ali o Cabecinha para brincar comigo.

O Cabecinha morava numa cave da Travessa do Vintém das Escolas, era feio, pobre, órfão de pai e tratava-me por menino devido a uma conformada consciência das diferenças sociais que o obrigava a não me ganhar nos jogos de futebol de baliza a baliza, muda aos cinco e acaba aos dez. Vingado por existir alguém mais miserável do que eu ordenava à cozinheira que mandasse vir o Cabecinha (soube no outro dia que o Cabecinha faleceu de uma doença tão obscura como a sua vida, Manuel da Costa Cabecinha baixo e humilde, sozinho na cave — Entre menino entre menino depois da mãe morrer) e o Cabecinha surgiu de rei mouro, com turbante e tudo, montado num cavalo de pau.

Estava magnífico, refulgente, digno de um harém de odaliscas e nunca compreendeu (— Entre menino entre menino) o motivo porque voltei as costas e, durante anos, deixei de lhe falar. A coisa que mais me arrependo na vida é ter cortado relações com o Cabecinha. Se ele não tivesse morrido ia hoje mesmo à Travessa do Vintém das Escolas para nos mascararmos de mulher, de lenço na cabeça, imenso rouge na cara e enchumaces a fingir de peito a fim de passearmos aos encon­trões um ao outro de taberna em taberna, no meio de príncipes, fadas e polícias, e desaparecermos de braço dado, Estrada de Benfica fora, a caminho de um país sem pobreza e sem caves enquanto as meninas espanholas nos atiravam das varandas serpentinas que ficavam a desbotar-se nos ramos das árvores até a chuva as levar.


(in Livro de Crônicas, Dom Quixote)


 * Escritor e psiquiatra português.

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