sábado, 11 de junho de 2016

Fantasias de Dona Nenê

* Por Pardal Mallet

Nenê andava também grandemente sobressaltada, nuns incompreensíveis de existência que ela mesma não sabia explicar. Tinham-lhe aparecido agora uns recrudescimentos de efusões maternais. Em repentes, pegava do Pedroca e beijava-o repetidas vezes, com umas grandes veemências que assustavam os circunstantes. Para com o marido tinha da mesma sorte uns transbordamentos de ternura, abraçando-o e beijando-o à vista de todos. Apesar do modo respeitador e quase cerimonioso pelo qual vivia com D. Augusta, esta não escapava às bruscas e repentinas manifestações de amizade que a moça atualmente derramava em mãos cheias ao derredor de si e das quais nem mesmo se livrava Sá Jovina. Parecia enfim que Nenê sentia em si uma exuberância de afeições que ela irrefletidamente ia prodigalizando a torto e a direito, talvez por não poder gastá-la como sonhava, nuns esquisitos de caprichos de que se admirava mais tarde, fazendo-se faceira, trabalhando nuns requintes de toilettes, vivendo num estranho de ilusões e de fantasias onde não se reconhecia, em cujo terreno julgava não ter passado até aquele momento.

Dominava-a agora uma grande paixão pela música. Sonhava umas harmonias deliciosas de instrumentos bizarros e nunca vistos, tangidos por mãos celestiais, a saturar o ambiente de sonoridades excitantes, a banhar-lhe o corpo inteiro numas vagas de sensualidades. Era nuns automatismos de alucinada que ela caminhava para o piano, fazendo-lhe vibrar o teclado numas notas merencórias de tristezas sem fim por entre as quais, de momento a momento, destacavam-se nuns rápidos veios auríferos os ritmos alegres de Offenbach. Ela andava assim, a estereotipar na variabilidade das músicas o vasto movediço que lhe ia pela alma adentro; todas essas modalizações bruscas e antinômicas do seu espírito a vogar, a vogar indeterminadamente, aos azares da correnteza, pelo oceano marulhoso dos pensamentos. E quando, nuns rápidos momentos passageiros, sentia-se senhora de si e procurava sondar essas paragens ignotas, em que navegava agora, achava-se em presença de um abismo sem fundo cujas sensações más procurava abafar num mundo de harmonias.

Por vezes, mesmo durante o dia, ela exigia que o Marcondes fosse ensaiar em sua companhia alguma nova peça. Os dois dirigiam-se para a sala de visitas cujas janelas escancaradas deixam entrar francamente sol alegre e vivificante a alumiar umas paisagens verdes e encantadoras, todas formadas com as árvores do jardim. Então olhavam-se, nuns olhares longos, expressivos, que procuravam conter um mundo de pensamentos dissolvidos na tibiez própria de cada um. Olhavam-se e sorriam-se, atrapalhados, lamentando esse momento do frente a frente, que haviam desejado pouco antes, silenciosos, sem terem a coragem de pronunciar uma palavra, com medo de ouvir o som da própria voz, procurando esconder o acanhamento das suas posições. E para aparentarem uns ares de desembaraço atiravam-se logo ao piano e flauta, tentando sufocar o que lhes ia pelo organismo inteiro, a febre que os devorava, num oceano sem fundos de harmonias, custando muito em acertar o compasso, tocando quase sempre ao acaso das recordações, vendo pouco e distraidamente a música que tinham diante dos olhos, com vontades de pôr um termo àqueles sofrimentos, de dizerem-se mutuamente os turbilhões de desejos que os abrasavam.

Pela porta que haviam deixado aberta, de envolta com o sopro de vida mansa e sossegada que vinha lá de dentro, Nenê sentia a beijarem-lhe as espáduas e a nuca, em satânicos de cantáridas, umas arreitações gostosas que a prostravam. Parecia-lhe ouvir, em tons murmurantes, umas excitações tresloucadas a lhe falarem de amor. Era a voz de d. Augusta, nas intimidades dos a sós, tecendo elogios ao Marcondes, achando-o um rapaz sério e refletido, que tinha diante de si largos horizontes e um futuro sorridente de prosperidade. Era Sá Jovina entoando em homenagem ao moço uns louvores sem fim, descobrindo-lhes qualidades raras, fazendo-o o protótipo das virilidades. Era o Pedro, que à noite, no aconchego dos lençóis, lhe contava anedotas da vida colegial, uns rasgos de coragem de amigo, umas situações difíceis em que todos se haviam retirado sãos e salvos graças à sua valentia e presença de espírito. Eram enfim as risadas infantis do Pedroca, que gostava muito do seu - amigo grande - e lhe vinha mostrar as balas que ele lhe trouxera.

E a moça curvava a cabeça num gesto gentil de vítima pagã que espera sorrindo o golpe do sacrificador. Entregava-se. Não tentava mais lutar. Parecia-lhe que a casa inteira - a mãe e o filho - o marido e a velha amiga, até mesmo os objetos, tudo quanto a circundava, conspirava para lançá-la nos braços daquele homem. E ela ficava ali, quieta e sossegada, num grande aniquilamento de si mesma, à espera que ele se abaixasse para tomá-la. Vinham-lhe umas submissões de escrava, vontades de que ele fosse brutal, desejos de cair nuns laivos de honestidades, aos últimos paroxismos de uma luta. E como ele se conservasse quieto, a olhá-la longamente numas ternuras medrosas, a moça levantava a cabeça e fitava-o com um sorriso triste de quem pede que acabem de uma vez com esses tormentos, de quem quer libertar-se quanto antes de perspectivas negras e ameaçadoras. Então os dois recomeçavam novamente a música, entoando as sinfonias tristonhas de uma qualquer balada alemã, procurando afogar o turbilhão de pensamentos, que lhes ia pelo cérebro dentro, no lago tranqüilo e calmo de umas melodias merencórias e taciturnas como a natureza gelada de sua pátria.

(Hóspede, capítulo XXII)


*  Jornalista e romancista, membro da Academia Brasileira de Letras. 

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