sábado, 5 de março de 2016

Rei, virgens e Aids


* Por Anna Lee


        
Suazilândia é um pequeno país da África Austral, limitado a leste por Moçambique e em todas as outras direções pela África do Sul, e tem uma das últimas monarquias absolutistas do mundo. Lá, numa cerimônia que acontece uma vez por ano, virgens, com os seios desnudos, dançam a “Dança dos Juncos” para o rei Mswati III escolher uma delas para se casar.

Ele já tem 13 mulheres e, neste ano, cerca de 30 mil candidatas reuniram-se para disputar a vaga de número 14. Pela primeira vez, entre elas estavam 43 adolescentes brancas que, ao contrário das negras, não exibiram os seios.

Antes que possam chegar diante do rei, as pretendentes devem prestar uma homenagem à rainha-mãe: dedicam-se à tarefa de cortar junco e cana-de-açúcar para presenteá-la. Depois disso, num baile, na esplanada do palácio real, tentam seduzir Mswati III.

Até estaria disposta a encarar a poligamia do rei de Suazilândia como um dado antropológico. Desde que li que Artaud, convencido da falência do “velho mundo”, em 1936, foi ao México buscar uma cultura desaparecida na Europa, vejo com reservas qualquer tipo de julgamento sobre crenças ou costumes sociais de povos que sejam distintos do que se convencionou chamar de “normal” na cultura ocidental, a que estamos assujeitados.

No prefácio do Teatro e seu duplo, Artaud faz uma afirmação sobre a qual vale a pena refletir: “E, também, se achamos que os negros cheiram mal, ignoramos que para tudo que não é Europa somos nós, brancos, que cheiramos mal. Eu diria mesmo que exalamos um odor branco, branco assim como pode se falar num ‘mal branco’. Assim como o ferro em brasa é ferro branco, pode-se dizer que tudo o que é excessivo é branco; e, para um asiático, a cor branca tornou-se a insígnia da mais extremada decomposição”.

Ainda no Teatro e seu duplo, Artaud propõe uma unidade entre teatro e vida, a qual o Ocidente teria perdido. Ele encontra essa unidade quer no Oriente, quer naquilo a que poderíamos chamar de “ocidente do Ocidente” (como prova a sua atração pelo México, derrotado, mas não destruído pelos conquistadores europeus). São civilizações onde ele teria visto povos “cujo teatro não estava no palco, mas na própria vida”. E, se considerarmos a teatralidade que a cerimônia da “Dança dos Juncos” em Suazilândia carrega, não teria nada demais, num primeiro momento, encaixá-la na categoria de encenação da própria vida, proposta por Artaud.

Mas isso não é possível. Porque antes da teatralidade de tal cerimônia, vêm as estatísticas das Nações Unidas, em que o reino de Mswati III tem se destacado por seus pífios indicadores sociais.

Com 1,1 milhão de habitantes, Suazilândia tem cerca de 40% de seus cidadãos vivendo abaixo da linha de pobreza e a maior taxa mundial de contaminados pelo HIV. A mortalidade provocada pela Aids – 17 mil, em 2003 – faz com que a expectativa de vida seja de 37 anos para os homens e 34 para as mulheres.

Enquanto isso, Mswati vive de forma suntuosa. Cada uma de suas noivas recebe de presente um automóvel BMW e um palácio para morar.

Eu nunca estive em Suazilândia. Não acredito que esse país seja freqüentemente visitado. Posso estar enganada. Mas, pelo sim, pelo não, acho que Heloísa Helena, candidata do PSOL à Presidência, jamais deva passar por lá. Não depois de, para se defender da suspeita de ter votado pela absolvição do ex-senador Luiz Estevão, cassado por quebra de decoro parlamentar em 2000, ter afirmado, na sabatina da Folha de S. Paulo: “Disseram que eu dormia com o cara [Estevão] (...) Não durmo com homem rico e ordinário. Eu vomito em cima”. Já viu o que poderia acontecer com ela...

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.

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