segunda-feira, 28 de março de 2016

Renúncia da fé por causa de epidemia



O escritor dinamarquês do século XIX, Jens Peter Jacobsen (nascido em 7 de abril de 1847 na cidade de Thisted), traz à baila, no livro “A peste em Bergamo”, um aspecto totalmente diferente de outros tantos autores que escreveram sobre as várias epidemias dessa doença que atingiram, em diversas ocasiões, múltiplas regiões do mundo (praticamente todos os continentes, à exceção da Oceania). Tratou da questão sob o aspecto da renúncia da fé por parte de parcela expressiva da população da localidade atingida (no seu caso, a citada cidade italiana). Esse abandono da religião se dá, segundo ele, quando as pessoas constatam que “o céu” não quer (ou não pode) fazer nada para livrá-las de uma morte praticamente certa, em meio a horríveis sofrimentos. Observe-se que no tempo em que o escritor escreveu essa obra, a verdadeira causa do flagelo era absolutamente desconhecida. Havia quase que consenso de que o mal era “castigo divino” pelos “pecados” dos indivíduos ameaçados e, sobretudo, atingidos.

O livro de Jacobsen foi escrito em 1881. Portanto, treze anos antes que o bacteriologista francês, Alexander Yersin, identificasse e isolasse o bacilo causador da peste bubônica. Observe-se que a epidemia de que ele trata nunca aconteceu. Sua obra é absolutamente de ficção, posto que baseada em pesquisas de casos reais. É possível (e mais, eu diria que não somente é provável, mas até mesmo que é certo) que aquilo que Jacobsen tratou ficcionalmente, ocorreu de fato, e em mais de um lugar. A reação das pessoas em pânico, sobretudo em desespero, são razoavelmente previsíveis. Por exemplo, como o leitor acha que pelo menos parte considerável dos habitantes da Terra reagiria caso soubesse que o Planeta seria destruído por algum cataclismo cósmico no dia seguinte, que eliminaria todo e qualquer vestígio de vida neste nosso lar cósmico?

Muitos (é impossível de estimar quantos), provavelmente recorreriam, de fato, às suas crenças religiosas, tentando garantir uma “vida futura”, posto que espiritual, que suas crenças apregoam que exista para os crentes. Mas duvido que “todos” agiriam assim. Questiono, até, se esta seria a reação da maioria. Muitos, com toda a certeza, descrentes empedernidos da existência de uma “vida após a morte”, tentariam aproveitar ao máximo o tempo que lhes restasse, buscando satisfazer suas fantasias e desejos, brindando os sentidos com muita comida, muita bebida, sexo á vontade etc.etc.etc. enquanto estivessem vivos. Este é o cenário que Jens Peter Jacobsen pinta em “A peste em Bergamo”, assolada por hipotética epidemia. O escritor retrata multidões tomadas pelo que classifica de “peste interior”, ou seja, de um ceticismo absoluto e das rupturas de todos os laços éticos e morais r religiosos que eventualmente tivessem.

Ao constatarem que não receberiam nenhuma ajuda divina, seus personagens descrêem na existência de um deus. E dão livre curso a todos os seus vícios e aberrações. Blasfemam, entregam-se a prazeres proibidos, à magia negra, ao egoísmo sem limites, na base do “cada um por si” e à incontrolável violência. Uma das primeiras atitudes que adotam  é a de zombar dos penitentes, dos crentes com suas procissões, súplicas, promessas, jejuns e autoflagelações.

Jacobsen, embora pouco conhecido no Brasil, é um escritor consagradíssimo na Europa, e não somente em sua Dinamarca natal (mas principalmente nela). Foi um sujeito de vida curta (morreu em 30 de abril de 1885), aos 38 anos de idade, vítima de tuberculose. Todavia, é considerado, até hoje, o precursor da literatura realista dinamarquesa. Sua influência foi enorme não somente nas letras do seu país, mas principalmente nas de língua germânica. Para que o leitor tenha uma idéia de sua importância, basta citar que influenciou escritores do porte de Thomas Mann e de Rainer-Marie Rilke.

Outro dos seus feitos foi a tradução, para o dinamarquês, de “A origem das espécies” e da “Seleção em relação ao sexo”, as duas obras fundamentais do naturalista inglês Charles Darwin. Além de escritor, Jacobsen foi eminente botânico, premiado com a medalha de ouro pela Academia Dinamarquesa de Ciências. Uma de suas teses mais polêmicas foi a da defesa da liberdade sexual feminina, numa época em que isso soava a heresia. Era ateu convicto. Contraiu a tuberculose por volta de 1870 e passou os quinze últimos anos de vida, quase metade do tempo que viveu portanto, lutando contra a doença que, todavia, não o impediu de trabalhar. Sua obra literária é escassa, posto que de conteúdo relevante. Consiste, além de dois romances, de algumas narrativas breves e de centenas de poemas.           

Boa leitura.

O Editor.

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Um comentário:

  1. O desconhecido atemoriza, isso no começo da epidemia. Adiante, quando o destino fatal tornou-se inexorável, alguns podem ter antecipado seu fim.

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