Renúncia da fé por causa de epidemia
O escritor dinamarquês do século XIX, Jens Peter Jacobsen
(nascido em 7 de abril de 1847 na cidade de Thisted), traz à baila, no livro “A
peste em Bergamo”, um aspecto totalmente diferente de outros tantos autores que
escreveram sobre as várias epidemias dessa doença que atingiram, em diversas
ocasiões, múltiplas regiões do mundo (praticamente todos os continentes, à
exceção da Oceania). Tratou da questão sob o aspecto da renúncia da fé por
parte de parcela expressiva da população da localidade atingida (no seu caso, a
citada cidade italiana). Esse abandono da religião se dá, segundo ele, quando as
pessoas constatam que “o céu” não quer (ou não pode) fazer nada para livrá-las
de uma morte praticamente certa, em meio a horríveis sofrimentos. Observe-se
que no tempo em que o escritor escreveu essa obra, a verdadeira causa do
flagelo era absolutamente desconhecida. Havia quase que consenso de que o mal era
“castigo divino” pelos “pecados” dos indivíduos ameaçados e, sobretudo, atingidos.
O livro de Jacobsen foi escrito em 1881. Portanto, treze
anos antes que o bacteriologista francês, Alexander Yersin, identificasse e isolasse
o bacilo causador da peste bubônica. Observe-se que a epidemia de que ele trata
nunca aconteceu. Sua obra é absolutamente de ficção, posto que baseada em
pesquisas de casos reais. É possível (e mais, eu diria que não somente é
provável, mas até mesmo que é certo) que aquilo que Jacobsen tratou ficcionalmente,
ocorreu de fato, e em mais de um lugar. A reação das pessoas em pânico,
sobretudo em desespero, são razoavelmente previsíveis. Por exemplo, como o
leitor acha que pelo menos parte considerável dos habitantes da Terra reagiria
caso soubesse que o Planeta seria destruído por algum cataclismo cósmico no dia
seguinte, que eliminaria todo e qualquer vestígio de vida neste nosso lar
cósmico?
Muitos (é impossível de estimar quantos), provavelmente
recorreriam, de fato, às suas crenças religiosas, tentando garantir uma “vida
futura”, posto que espiritual, que suas crenças apregoam que exista para os
crentes. Mas duvido que “todos” agiriam assim. Questiono, até, se esta seria a
reação da maioria. Muitos, com toda a certeza, descrentes empedernidos da existência
de uma “vida após a morte”, tentariam aproveitar ao máximo o tempo que lhes
restasse, buscando satisfazer suas fantasias e desejos, brindando os sentidos
com muita comida, muita bebida, sexo á vontade etc.etc.etc. enquanto estivessem
vivos. Este é o cenário que Jens Peter Jacobsen pinta em “A peste em Bergamo”,
assolada por hipotética epidemia. O escritor retrata multidões tomadas pelo que
classifica de “peste interior”, ou seja, de um ceticismo absoluto e das rupturas
de todos os laços éticos e morais r religiosos que eventualmente tivessem.
Ao constatarem que não receberiam nenhuma ajuda divina, seus
personagens descrêem na existência de um deus. E dão livre curso a todos os seus
vícios e aberrações. Blasfemam, entregam-se a prazeres proibidos, à magia
negra, ao egoísmo sem limites, na base do “cada um por si” e à incontrolável
violência. Uma das primeiras atitudes que adotam é a de zombar dos penitentes, dos crentes com
suas procissões, súplicas, promessas, jejuns e autoflagelações.
Jacobsen, embora pouco conhecido no Brasil, é um escritor
consagradíssimo na Europa, e não somente em sua Dinamarca natal (mas
principalmente nela). Foi um sujeito de vida curta (morreu em 30 de abril de
1885), aos 38 anos de idade, vítima de tuberculose. Todavia, é considerado, até
hoje, o precursor da literatura realista dinamarquesa. Sua influência foi
enorme não somente nas letras do seu país, mas principalmente nas de língua
germânica. Para que o leitor tenha uma idéia de sua importância, basta citar
que influenciou escritores do porte de Thomas Mann e de Rainer-Marie Rilke.
Outro dos seus feitos foi a tradução, para o dinamarquês, de
“A origem das espécies” e da “Seleção em relação ao sexo”, as duas obras fundamentais
do naturalista inglês Charles Darwin. Além de escritor, Jacobsen foi eminente
botânico, premiado com a medalha de ouro pela Academia Dinamarquesa de Ciências.
Uma de suas teses mais polêmicas foi a da defesa da liberdade sexual feminina,
numa época em que isso soava a heresia. Era ateu convicto. Contraiu a
tuberculose por volta de 1870 e passou os quinze últimos anos de vida, quase
metade do tempo que viveu portanto, lutando contra a doença que, todavia, não o
impediu de trabalhar. Sua obra literária é escassa, posto que de conteúdo
relevante. Consiste, além de dois romances, de algumas narrativas breves e de
centenas de poemas.
Boa leitura.
O Editor.
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O desconhecido atemoriza, isso no começo da epidemia. Adiante, quando o destino fatal tornou-se inexorável, alguns podem ter antecipado seu fim.
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