sábado, 12 de março de 2016

O primeiro (conclusão)


* Por Edmundo Pacheco


Depois de dias escondido em seu quarto, com medo da escuridão atroz que recobrira o tudo, Erickson resolveu que teria que enfrentar o mundo. A barriga roncava, lhe encorajando.

Depois de conseguir algumas frutas que ainda estavam aproveitáveis, Eric invadiu a abandonada casa de dona Genoveva para ver se as formigas da TV lhe diziam  o que estava acontecendo, mas nada. O silêncio tomava conta de tudo. A noite era total.

Então, Eric juntou um pouco do que pôde, colocou tudo numa velha bicicleta cargueira, que encontrara abandonada na frente da venda do velho Guido, amarrou uma lanterna no guidão e partiu rumo a Maringá. Imaginava que logo veria as casas, pessoas. Vida. O dia. As casas apareceram depois de algumas horas de pedaladas e muito suor. Estavam todas lá, intactas. Mas não havia ninguém. Nunca mais encontrou vida em lugar algum.

No começo, assustava-se ao ver as pessoas e animais mortos, espalhados pelas ruas, pelas casas, apartamentos, carros...E o estômago se revoltava com o cheiro de carne  se decompondo. Não conseguira mais comer ou beber. E com o tempo, acostumara-se a viver assim. Com o tempo, a escuridão total foi sendo dissipada e o céu ressurgiu, sempre carregado de nuvens espessas, como que um tremendo temporal estivesse por desabar. Mas, nunca choveu.

Agora, Eric sentia saudades daqueles tempos de escuridão. E sentia uma compulsão pelo canto escuro, pelo ninho. Sentia que se encontrasse um canto, iria conseguir ter um minuto de sossego. As dores, que estavam ficando cada vez mais terríveis, iriam embora.

Perambulou por aquele resto de dia, pelos corredores do velho prédio carioca. Quando finalmente encontrou um quarto utilizável, Eric estava exausto. Seu corpo todo, agora pesando cerca de 150, 180 quilos, derretia-se. E suas entranhas movimentavam-se como se tivesse vida, transformando a dor em algo insuportável.

Tudo, dentro dele, pulava, revirava-se, rasgava-se. Eric acomodou-se num velho colchão sujo. Virou-se de um lado a outro. Rolou pelo chão como se fosse virar lobisomem, como contavam as velhas lendas dos velhos de Vera Cruz.

A dor tornava-se cada vez mais insuportável.. Eric lembrou-se de quando  morreram os humanos. Seu corpo todo doía. Seu ventre parecia que ia estourar. Deveria estar morrendo como todos. Finalmente chegara sua hora. Seria melhor assim.

Num último ímpeto de dor, loucura, desespero, começou a massagear o abdômen com fúria, tentando expulsar o que o consumia.

O rato vermelho e gordo voltou pra ver o que estava acontecendo, esticou um olho numa das frestas da velha porta e, assustado, fugiu. Eric gemia, gritava, urrava, sentindo seu corpo rasgar-se. Definitivamente, havia algo errado. Havia algo vivo dentro dele. Algo vivo que queria sair.

Eric imaginou, num raro lampejo de lucidez, que pegara alguma espécie de verme. Era isso! Um verme!! Agora só precisava expulsá-lo ou morreria com a coisa entalada em sua barriga.

Massageou-se, apertou-se, pulou, gritou, sentiu golfadas de sangue escorrendo pelas pernas, urrou, desmaiou. Acordou e continuava entalado com aquela coisa lhe devorando por dentro.

Só quando a escuridão se fechou totalmente sobre ele, sentiu que teria sucesso. As dores se deslocaram para a parte mais baixa do ventre. E agora, doía-lhe o ânus, como que rasgando-se, dilatando-se. O monstro estava por sair.

Era pura loucura. O quarto escuro. O chão escorregadio, lambuzado. O cheiro acre de sangue e fezes. Os ratos, que volta e meia se enchiam de coragem e arriscavam um olho para a cena absurda.

Depois de horas de luta, Eric conseguiu, finalmente, agarrar algo que lhe entupia o reto. Pareceu-lhe uma bola. Lisa, nojenta. Tirou forças sabe-se lá de onde, resistiu à dor mais irracional e agarrou aquela coisa maldita que o estava matando. Puxou, puxou, puxou e puxou, até que a coisa toda espirrou numa golfada de sangue. Eric caiu de costas para o colchão, desmaiado. Finalmente estava livre.

Quando o dia amanheceu, um sol maravilhosamente dourado, que há anos não se via, rasgou as nuvens espessas e lançou seus raios quarto adentro, lembrando os melhores tempos da cidade maravilhosa. Em Copacabana, uma família de elefantes brincava na areia. Eric ainda dormia, quando um grito estridente trouxe vida ao cômodo. O ratão viria novamente ver o que estava acontecendo. Eric acordou de chofre.

Primeiro apalpou o ventre, procurando a dor. Nada. Ficou ali, deitado de costas, com os braços cruzados sob a cabeça, curtindo aquela sensação de vazio, de não-dor, que só poderia ser traduzida como felicidade.

Enquanto curtia aqueles minutos de paz, ouviu o grito. Lembrou-se do monstro que havia expulsado de suas entranhas e, então, num salto, abriu os olhos apavorado. A seu lado, meio enrolado entre velhos trapos, restos de sangue e excrementos, dois olhinhos azuis o olharam e a boca desdentada, do bebê mais lindo do mundo, abriu-se num sorriso.

Eric sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha, enquanto se preparava para amamentar o primeiro, pela primeira vez.

*Jornalista.

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