Manzoni enfatiza a solidariedade em
meio a tragédias
A descrição feita por Alessandro Manzoni, no romance “Os
noivos”, dos efeitos do que se convencionou chamar de “A Grande Peste de Milão”,
que devastou, entre 1621 e 1639, todo o Norte da atual Itália, matando um
número estimado em meio milhão de pessoas (há quem garanta que foi muito mais),
prima pelo aspecto humano. Enfatiza, sobretudo, a solidariedade que, salvo
exceções, se manifesta em meio a tragédias. Embora o escritor fosse membro da
aristocracia rural da Lombardia, seu olhar volta-se, com especial destaque,
para o sofrimento dos pobres, dos desvalidos, dos camponeses miseráveis e
entregues à própria sorte, que, não raro, não tinham sequer o que comer. É um
relato pungente, chocante, em forma, praticamente, de denúncia (posto que
velada) ao que dá entender que se tratava de absurda injustiça social.
Destaque-se que Manzoni tinha “pedigree” intelectual. Além
de receber educação das mais esmeradas, era neto (por parte da mãe) de ninguém
menos que o filósofo e jurista milanês Cesare Beccaria, considerado o principal
expoente do Iluminismo Penal, que praticamente mudou o conceito de Justiça com
seu clássico “Dos delitos e das penas”, livro que tive a oportunidade de ler em
1977, quando estudante da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
Qualquer aluno do curso de Direito, estude onde estudar, conhece essa obra,
fundamental no estudo das ciências jurídicas. Certamente Manzoni absorveu
preciosos ensinamentos do seu ilustre avô.
Separei, para transcrever neste espaço, um trecho da
pungente descrição do romancista do lazareto de Milão, no auge da epidemia de
peste bubônica, onde os noivos, Renzo e Lúcia, que haviam sido separados no
exato dia em que deveriam se casar, finalmente se reencontram. Sem dúvida, não
era um local, digamos, bucólico e inspirador para esse tão batalhado
reencontro. O texto de que me utilizo é o da edição espanhola do livro, que
traduzo um tanto livremente. Manzoni relata, em determinado trecho: “(...)
Viam-se sentadas, em várias partes, enfermeiras com crianças achegadas ao
peito; algumas delas manifestavam tamanhas mostras de carinho que deixavam
dúvidas, aos que as viam, se elas haviam sido atraídas àquele lugar pela
expectativa de remuneração ou se por essa caridade espontânea, que vai em busca
dos necessitados e dos que sofrem (...)”.
Manzoni tanto mostra comoção com o sofrimento das crianças,
as maiores vítimas de um flagelo como aquele (e, ademais, de qualquer outro,
convenhamos, ainda mais quando atingem famílias miseráveis), quanto com as
generosas pessoas que tentavam cuidar delas. E prossegue, em seu relato: “(...)
Uma das citadas enfermeiras, extremamente aflita, desprendia, de seu seio, uma
criatura que chorava com força e buscava, tristemente, o animal (cabra) que a
substituísse no ato de alimentar a criança faminta. Outra, contemplava,
satisfeita, o pequeno que dormia com o bico de seu seio na boca e beijando-o,
docemente, caminhava em direção a uma cabana para acomodá-lo em um
colchãozinho. Mas uma terceira, abandonando o peito a uma criatura estranha,
com certo ar, não de negligência, mas de preocupação, olhava fixamente para o
céu. O que essa enfermeira pensava, naquele instante, naquela atitude, com
aquele olhar para um outro menino que não o filho nascido de suas entranhas,
que talvez, pouco antes, havia chupado aquele seio e que, também por acaso, havia
exalado sobre ele seu último suspiro? (...)”.
Imaginem o que poderia passar pela cabeça de alguma mulher
numa situação como essa! Certamente dor, frustração, revolta e uma gama de
sentimentos indescritíveis, que em tais momentos pessoas que vivem dramas como
esse têm, tentando, sobretudo, entender o que lhes seja incompreensível.
Manzoni prossegue, mais adiante, sua descrição: “(...) Outras mulheres, de
idades mais avançadas, estavam empenhadas em executar outras tarefas. Uma
acudia aos gritos de um menino faminto. Tomava-o nos braços e levava-o perto de
uma cabra, que pastava em meio de uma touceira de grama fresca, aproximando sua
boca da teta do animal ao qual tentava acalmar, acariciando-o, ao mesmo tempo
em que executava, com doçura, esse serviço. Outra mulher corria, apressada,
para atender a um pobrezinho, pisoteado por uma cabra, enquanto procurava dar
de mamar a outra criança (...)”..
Dessa dramática descrição, fica, em nosso espírito, a
indagação: qual desses sofrimentos era o mais agudo, a fome dos bebês, que
acabavam de ficar órfãos, ou a morte de suas mães, ceifadas, de forma
implacável, pela insensível peste? Claro que ambos. Mas... Manzoni enfatiza a
piedade, a abnegação e a solidariedade das enfermeiras que, arriscando suas
vidas, acudiam aqueles pequenos seres desamparados. Não, não podia ser por dinheiro.
Ou não apenas por ele. E o escritor prossegue: “(...) Uma das enfermeiras
levava uma criança, de um lado para outro, acalentando-a, tentando fazê-la
dormir por meio de cantos, quase que murmurados e sossegando-a com palavras
carinhosas. chamando-a por um belo nome que ela mesma havia inventado. De repente, surgiu um capuchinho, de barbas
branquíssimas, levando dois bebês nos braços, que choravam incontrolavelmente, e
que ele havia acabado de tirar do colo das respectivas mães, que haviam expirado
momentos antes. Uma das mulheres presentes se apressou em receber os
recém-nascidos. Depois, observou atentamente ao redor, as enfermeiras e as
cabras, à procura de alguém que se dispusesse a substituir as mães mortas das
duas crianças (...)”.
Não por acaso, “Os noivos” é um clássico da Literatura
mundial. Concordo plenamente com a opinião do jornalista Luís M. Faria sobre
esse livro, publicada na revista “Expresso”: “(…) O tema é universal: uma
história de amor entre dois jovens humildes que desafia as circunstâncias. Por
outro lado, há cenas emocionantes e um elenco de personagens quase perfeitas na
sua vitalidade, desde camponeses e clérigos a nobres, monjas, tiranos e
bandidos. Com graus variáveis de complexidade psicológica, proporcionam flashes
da natureza humana onde não é raro encontrar sabedoria. (…) A voz do autor
vai-nos falando num tom calmo de contador que sugere como esta obra merece ser
lida”. E merece de fato, e muito, estejam certos.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
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