A peste, como ler um livro tão singular
“A peste”, de Albert Camus, é desses livros singulares que
não podem ser lidos como se lê um romance comum, sob pena de perder o que tem
de melhor. É dessas obras que requerem uma ou mais releituras, para não deixar
escapar nada do que o autor pretendeu transmitir, tanto explicitamente, quanto
(e principalmente) nas entrelinhas. Entre seus tantos méritos, um se sobressai:
o de induzir o leitor à reflexão que, de outra forma, provavelmente não faria.
Lançado pela primeira vez, na França, em 1947, pela Editora Gallimard, provavelmente
foi escrito quando a Segunda Guerra Mundial ainda estava em pleno andamento, ou
logo após seu término, deixando a Europa em escombros, num rastro de destruição
e de morte como nunca se viu na história do continente e, provavelmente, da
humanidade.
Já li várias interpretações, de renomados críticos e de
filósofos quer sobre o verdadeiro teor dessa obra e quer, até, sobre seu próprio
gênero literário. Neste último caso, por exemplo, para a grande maioria, apesar
de despertar reflexão no leitor, a propósito de temas como a morte, a
liberdade, o medo, a revolta, a solidariedade ou falta dela e sobre tantos
outros conceitos, o livro tem que ser classificado, apenas, como um romance bem
escrito. Para outros, é obra de cunho nitidamente filosófico-existencial, Outro
grupo classifica-o como alegoria política retratando todo regime totalitário e,
particularmente, ao nazismo. Já o sociólogo, crítico literário, semiólogo e
filósofo francês, Roland Barthes, em brilhante resenha que fez de “A peste” –
suponho que na década de 70, já que faleceu em 26 de março de 1980 –
reproduzida no caderno “Mais!” do jornal “Folha de S. Paulo” em 5 de janeiro de
1997, interpretou o livro como uma “crônica”, a despeito de se tratar de
ficção.
O ilustre analista escreveu, a certa altura: “Isso quer
dizer que todos os temas habituais do romance – o homem, o amor ou o sofrimento
– são vistos aqui através da transparência e do distanciamento de uma história
coletiva, acompanhada dia a dia sem jamais se deixar penetrar por uma
significação propriamente histórica. A meio caminho entre a História e o
Romance, “A peste'' poderia ainda ter sido uma tragédia. Logo veremos que
preferiu ser o ato de fundação de uma Moral”. Na minha avaliação pessoal (claro
que posso estar equivocado) o livro é tudo isso simultaneamente. É para ser não
somente lido (e relido, reitero), mas analisado, estudado, refletido e
comparado com outras obras do autor.
Concordo com o mestre em Ciência da Literatura, Literatura
Comparada, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Hudson dos Santos
Barros, quando afirma, em sua tese de mestrado, intitulada “A civilização, a
cidade e o indivíduo em A Peste de Albert Camus”: “(...) Este trabalho visa
mostrar como Camus permite uma reflexão significativa sobre o assunto. Os
personagens desse famoso jornalista e escritor do cenário francês são pessoas
em conflito com as conjunturas em que vivem. Eles são seres revoltados e em
busca da liberdade individual, são pessoas sufocadas pela impossibilidade
diante de uma realidade (ou realidades) que não permite(m) ao indivíduo o
exercício de sua vontade. Frente ao mundo e à civilização, seus sentimentos,
seus desejos e ações estão a mercê de forças que não se podem controlar. Ao
contrário, é a força da lei que controla, lei que exerce seu poder tanto no
plano político como nas ações que constroem a identidade do sujeito (...)”.
O enredo se desenvolve na pequena cidade argelina de Oran. Trata-se
de localidade sem nada de especial, onde a população leva vida monótona e sem
brilho, como em tantas e tantas outras cidadezinhas ou vilarejos espalhados
pelo mundo. Os moradores têm a mesma preocupação que qualquer habitante de
comunidades com a mesma característica. Ou seja, vivem para o trabalho e para,
quando possível, economizar algum dinheiro, para fortuitos investimentos ou
mesmo para fazer frente a algum dos tantos imprevistos que nos ocorrem sem
nenhum aviso. Sua vida é rigorosamente rotineira, inclusive em questões
sentimentais. Como ocorre em qualquer lugar, por exemplo, há casais, e não
poucos, que vivem juntos por puríssimo hábito, sem que haja nenhum sentimento
especial que os vincule. Aliás, sequer pensam nisso. Tocam suas vidinhas
cinzentas e descoloridas, como se essa mútua indiferença fosse a coisa mais
natural do mundo. Não há espaço, ou se houver esse é sumamente exíguo, para
romances e devaneios. Albert Camus destaca, nas primeiras páginas do livro: “Em
Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo ou reflexão, somos obrigados a
amar sem saber”.
Eis que, sem nenhum aviso, algo de muito estranho se
verifica na modorrenta cidade. Começam a aparecer, praticamente do nada, ratos
pretos agonizando. Primeiro às dezenas. Depois, às centenas, aos milhares,
intrigando a população. O pior vem a seguir. As mortes passam a afetar, também,
os moradores. O sentimento inicial é o de espanto. O que estaria acontecendo?
Qual o motivo de todas essas mortes, inicialmente de ratos e posteriormente de
pessoas? Haveria alguma explicação lógica para o fenômeno? Qual? Ninguém sabia.
Em vez da mortandade cessar, todavia, ela se amplia mais e mais, envolvendo
tanto roedores quanto humanos. Foi quando o estarrecimento inicial deu lugar ao
medo, ao pânico e, finalmente, ao horror. Tardou, todavia, para que o inimigo
invisível fosse identificado: peste bubônica. As reações à epidemia é que são
motivos de reflexão sobre o comportamento das pessoas diante de algum extremo
perigo que ameace a todos, sem que ninguém fique livre. E é justamente isso que
me proponho a analisar com vocês nos próximos dias.
Boa leitura.
O Editor.
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A Aids foi e a zika é o pânico do momento. Salve-se quem puder.
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