Sujeito Zero (11)
* Por Sergio Vilas Boas
Toca o
telefone do quarto
do Whaler’s Inn. Uma voz grave atravessara a Amazônia, o Caribe e o porto
congelado de Mystic para dizer a Alma, via satélite:
- É o momento de aprofundar as
lembranças. Fale sobre ele em voz alta, se for o caso. Converse sozinha.
- Estou digitando tudo.
- Ótimo.
Houve uma pausa.
- Você está bem?
- Tomei as pílulas.
- Ok. Fique tranqüila. Você vai
desembarcar em local seguro, onde não vão te encontrar de jeito nenhum. Antes
do dia amanhecer te digo onde.
- Estou com medo, Wapson.
- Vai dar tudo certo. O Grande Alvo já
está sob nossa mira. Por agora, pense no seu pai. Remonte a história. Quanto ao
resto, confie em mim.
***
Wapson é um nome incomum, não? Passo a
ler e reler freneticamente as informações fornecidas por Alma até minhas vistas
se embaralharem. Capturado de surpresa, sinto-me obrigado a formular hipóteses,
fazer inferências, investigar. O problema é que direciono a lanterna para um ponto
qualquer, mas invariavelmente o perco, e os arredores tampouco me iluminam.
Conecto-me à internet. Digito
“ilimitada”, “unlimited” e “Wapson” no campo de pesquisa de um software de
busca. O primeiro endereço que aparece é exatamente o da Unlimited Responsability,
ONG para a qual Alma trabalha. A “missão” da Unlimited é um menu variado:
fiscalizar atos governamentais, preservar o meio ambiente, defender direitos
humanos, promover a educação, garantir o funcionamento da saúde pública,
racionalizar o transporte urbano...
Em www.unlimit.org
descubro ainda que Wapson é um dos fundadores da tal ONG, além de advogado,
ambientalista e autor de Terror no
Atlântico Norte, “análise histórica da caça às baleias nos mares dos EUA”.
Seu nome completo - Wapson J. Vogler - me deixa agitado. Não pode haver no
Brasil dois ambientalistas com o mesmo nome e idade (54 anos).
Confirmo que Wapson, coordenador das
ações da Unlimited Responsability, é o filho mais velho da falecida Martha
Vogler, que biografei mediante contrato feito com Anna, a caçula da família. Legado de Martha Vogler se baseou nos diários de uma senhora que
criava trutas e cultivava orquídeas em um sítio paradisíaco na Serra da
Mantiqueira, divisa de Minas Gerais com São Paulo.
Os primeiros registros dos Vogler
remontam ao século XVII, na paróquia protestante de Niederhasli, Suíça. Só em
1862 nasceria o primeiro Vogler nas Américas - Christoph House Vogler -, em
Salem, Massachusetts (EUA). Christoph e sua mulher Ann Hilt Vinal são os avós
de Martha.
Christoph
e Ann pertenceram à Sociedade dos Amigos (Quakers), movimento religioso
iniciado séculos antes por George Fox (1635-1691). Os Quakers não se fiavam na
interpretação das escrituras formuladas pelos pastores puritanos, e sim na
Doutrina da Luz Interior, que preconizava o relacionamento direto do ser humano
com Deus, acima de qualquer Igreja ou autoridade governamental.
As
comunidades Quakers se diferenciavam das outras da Nova Inglaterra em vários
aspectos. Um deles era a crença no pacifismo e o repúdio consciente à
ostentação mundana, dois princípios que não deviam de modo algum interferir no
potencial do indivíduo para ganhar dinheiro.
No
terrivelmente mal escrito Terror no Atlântico Norte, que terminei de ler, Wapson revela que seu bisavô Christoph enriqueceu
à custa do sinistro negócio da venda de espermacete, transformando-se em
bárbaro assassino de cachalotes (a maior
baleia com dentes do mundo).
Ao
longo de quase trezentos anos, a caça predatória às baleias de qualquer espécie
foi um dos negócios mais rentáveis da América puritana, a mais cobiçada forma
de pesca entre os séculos XVII e XIX. Não era uma questão de matar para comer.
Tanto que o valor comercial do óleo das baleias reduziu o interesse dos
investidores pelo bacalhau, por exemplo, rico em proteínas, iodo e vitamina A,
fontes de energia valiosas.
Os exploradores ambicionavam não a
carne, e sim a gordura das baleias, a partir da qual produziam uma substância
oleosa ideal para iluminar casas e ruas, e mais clara e brilhante que as
fumacentas e fedorentas velas feitas a partir do sebo de animais. Além da
gordura, os mil e oitocentos litros de espermacete, óleo claro contido na
cavidade superior da cabeça dos cachalotes, eram mais limpos e eficientes que
os das outras espécies.
Desabafe, Wapson:
A
raiva que os Quakers eram proibidos de expressar por meio de ações explícitas,
por não encontrar vazão, envenenavam todos os empenhos de generosidade e
bondade humana. O manto religioso pacifista encobria criaturas sanguinárias. A
doutrina calvinista, para a qual o Mal era inerente à humanidade e a alma,
predestinada, erigiu uma sociedade severa e intransigente, que patrocinou
moralmente os estragos irreversíveis que seriam patentes no século XX. Além
disso, infligiram uma rígida moral que até hoje parece refletir na medíocre
atitude cotidiana do americano médio.
Nascido e educado nos EUA, fluente em
português, Wapson é hoje um profundo conhecedor da Amazônia brasileira.
Radical, leva tudo muito a sério, inclusive a si mesmo. De tanto procurar, acabou
encontrando seu Grande Alvo: o presidente americano eleito sem maioria dos
votos George W. Bush, “o caipira de Q.I. baixo” que teve a petulância de dizer
ao vivo e a cores durante a campanha que aceita pagamentos indiretos para as
dívidas externas dos países pobres e até mencionou a Amazônia como boa maneira
de o Brasil reduzir seu débito.
Alma e Wapson pregam que qualquer
esperança de um futuro melhor deve passar, necessariamente, pela eliminação do
“perigoso cretino”, que, com seu pragmatismo aviltante, já lançou novas bases
para um ar cada vez mais irrespirável: Ironia
de lascar/ o povo mais provinciano/ desse nosso Planeta/ uma globalização
liderar.
Como se não bastasse, Wapson é o mentor
de Alma, razão de ela ter comparecido ao coquetel de lançamento de Legado, onde a vi pela primeira e única
vez. Une-os também a recíproca de que sempre existiram (e existirão) três
mundos diferenciados por uma escala única de valores: o mundo dos valores
antigos, o dos valores recentes e o mundo sem valores. A este último pertencem
os que, por conveniência, assimilam tanto as involuções quanto as evoluções, os
que abusam do livre trânsito entre o arcaico e o pós-moderno e os que perderam
as referências, tornando-se céu sem rosa-dos-ventos.
***
Alma desligou o telefone e se aproximou
da janela. A nevasca soterrara carros, ruas, praças. Mal ela podia distinguir
uma coisa da outra, de tão fundidas. Era um cenário lindo mas desolador. Se
tudo tivesse dado certo, ela estaria decolando de Newark a tempo de comparecer
ao enterro de Seu Edmundo. Mas estava ali, presa em um quarto impessoal, imersa
na quietude de um fundo branco infinito, as lágrimas a exauri-la.
* Jornalista,
escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente
da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros
do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre
outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
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