domingo, 14 de fevereiro de 2016

O encontro da nacionalidade

* Por Sábato Magaldi


O papel de Gonçalves de Magalhães no teatro brasileiro foi sobretudo o de dar consciência e impulso orientador a uma aspiração íntima do país, quando chefiou o grupo literário que introduziria entre nós o Romantismo. Em Paris, editou a revista brasiliense Niterói e seu livro Suspiros poéticos e saudades, publicado também na capital francesa, permanece o marco de introdução da nova escola em nossa literatura. Os méritos propriamente artísticos do pioneiro não entusiasmam a crítica posterior, embora ninguém lhe recuse a importância histórica.

Magalhães nasceu em 1811 e era apenas um menino ao proclamar-se a Independência do Brasil. Assistiu, na adolescência, ao princípio de afirmação da nacionalidade, que vinha consolidar os melhoramentos introduzidos por D. João VI no país, ao transferir para o Rio de Janeiro, em 1808, a corte portuguesa. A sede de um reino não poderia limitar-se ao acanhado âmbito de colônia, e tudo prosperou, a partir de fins da primeira década do século. À abertura dos portos ao comércio livre, aos novos direitos políticos e ao incremento econômico, somou-se a criação de bibliotecas, museus, jornais e escolas superiores, e o incentivo da vida artística, dentro da qual o teatro se tornaria de fato uma atividade regular. A Independência foi longamente preparada por uma literatura de moldes nativistas: depois que D. Pedro I a proclamou, em 1822, as artes deveriam incorporá-la à sua expressão.

O clima internacional da época favorecia as novas tendências nacionalistas. Chegado a Paris, Magalhães encontrou ambiente diverso do neoclassicismo em que se formara no Brasil. Victor Hugo já havia lançado o prefácio do Cromwell e fora recentemente travada a batalha do Hernani. Esse impacto calou fundo na sensibilidade menos derramada do jovem brasileiro, que se votava também às meditações filosóficas. Colheu do romantismo o que lhe parecia mais aproveitável, sem renegar, contudo, o equilíbrio dos padrões clássicos.

Essa atitude intelectual se justifica pelas peculiaridades da formação brasileira. Quando Victor Hugo e, antes, os alemães se empenharam na reforma literária, estavam saturados das harmonias antigas. Tinham de sacudir o jugo asfixiante do passado. A rebeldia, de súbito expandida, toma, naturalmente, forma explosiva. Entre nós, o panorama se desenhava em cores menos enérgicas: não havia uma tradição contra a qual opor-se; o passado era marasmo e não presença viva e importuna; cabia, na verdade, formar e não reformar.

Por isso a obra de Gonçalves de Magalhães se afigura à crítica um elo de transição entre a escola antiga e o Romantismo. Lançado por ele o manifesto poético, em 1836, o manifesto teatral o sucederia de pouco, já que pressupõe a obra coletiva, mais demorada. Foi a 13 de março de 1838 a noite histórica do teatro brasileiro, na qual subiu à cena do Constitucional Fluminense, no Rio, a peça Antônio José ou o Poeta e a Inquisição, cujo prefácio traz as seguintes palavras do autor: "Lembrarei somente que esta é, se me não engano, a primeira tragédia escrita por um Brasileiro, e única de assunto nacional."

A estréia constituiu-se num êxito, pela união feliz do texto ao desempenho da companhia de João Caetano, dirigindo-se a uma platéia que psicologicamente estava a esperar o acontecimento. Também no prefácio, Magalhães informa: "Ou fosse pela escolha de um assunto nacional, ou pela novidade da declamação e reforma da arte dramática (substituindo a monótona cantilena com que os atores recitavam seus papéis pelo novo método natural e expressivo, até então desconhecido entre nós), o público mostrou-se atencioso, e recompensou as fadigas do poeta."

O assunto nacional era a vida do dramaturgo Antônio José, que o poeta subtraiu do domínio português, embora a ação da peça transcorra em Lisboa, onde foi ele queimado, em auto-da-fé, por suposta prática de judaísmo. Garrett, o criador do teatro romântico português, escreveu também em 1838, depois da nossa peça (segundo o testemunho de Araújo Porto-Alegre no prefácio do drama perdido Os Toltecas), Um auto de Gil Vicente, aparentado na inspiração à do poeta brasileiro: ao tema sugerido pelo fundador do teatro lusitano, correspondia o tratamento da existência trágica do autor de Guerras do Alecrim e Manjerona, cujo berço, no Rio, bastou para atestar-lhe a brasilidade.

Parece o produto de uma escolha da razão o tema de Magalhães. Observou ainda ele: "Desejando encetar minha carreira dramática por um assunto nacional, nenhum me pareceu mais capaz de despertar as simpatias e as paixões trágicas do que este." "Eu não sigo nem o rigor dos Clássicos nem o desalinho dos segundos (os Românticos." "(...) antes, faço o que entendo, e o que posso. Isto digo eu aos que ao menos têm lido Shakespeare e Racine." A assimilação e o desenvolvimento de certas características de ambos, aliás, participava da estética romântica, e o nosso dramaturgo não trairia a sua natureza nem os pressupostos da nova escola se acomodasse a sua obra àqueles modelos. Completa o quadro uma referência à noção do idealismo grandioso de Corneille.

A falta, no seu tempo, de informações mais pormenorizadas sobre a vida do Judeu, ou o desejo romântico de moldá-lo segundo o esquema das vítimas de uma injustiça mais poderosa, contra a qual é impotente o homem, fez que Magalhães fantasiasse a trama ao seu inteiro arbítrio.

O verdadeiro motor da ação, marcando-lhe os momentos decisivos, é Frei Gil, que persegue o Judeu. Haveria aí fanatismo religioso? Não, porque o representante da Inquisição está distante de qualquer fé católica. Seu propósito é o de afastar Antônio José da atriz Mariana, na esperança de conquistá-la. Como o herói repele a investida do frade contra a bem-amada, a vingança de vilão será perdê-lo nos cárcere inquisitoriais. Frei Gil denuncia o indefeso poeta, levando-o a ser sacrificado vivo na fogueira.

O sucesso da trama sinistra depende, do ponto de vista dramático, de várias coincidências e de recursos folhetinescos. O frade certifica-se da presença de Antônio José na casa do Conde de Ericeira, seu protetor, por intermédio de uma carta que marcava um livro. Com uma fragilidade que é muito mais de teatro que da vida real, Mariana morre instantaneamente quando os Familiares do Santo Ofício prendem Antônio José. Nada prenunciava essa delicadeza de saúde. Estupefato com a cena, fixando o céu, Frei Gil tem aí a revelação fulminante de sua culpa.

Impunha-se esse golpe fatal para que o frade reencontrasse o caminho da Igreja. O arrependimento e a penitência não faltariam a um teatro de claras preocupações morais. Talvez Magalhães tenha compreendido a observação do prefácio de Cromwell, segundo a qual "le beau n’a q’un type; le laid en a mille." A caracterização de um mau frade pretendia enriquecer a galeria de personagens originais. O retorno aos mandamentos cristãos assegurava a vitória da moralidade.

(Panorama do teatro brasileiro, 1962.)


* Professor, teatrólogo e membro da Academia Brasileira de Letras.

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