domingo, 14 de fevereiro de 2016

Belo atraso


* Por Harry Wiese


No dia 27 de março de 2012, ao cair da tarde, em pleno outono, na véspera da chegada da primeira frente fria do ano, eis que com toda potência e beleza, uma cigarra entoou seu canto magistral. Não tenho notícia de um canto de cigarra tão tardio.

Sempre tive paixão pelo canto desses insetos. Eles lembram minha infância. Eram mensageiros de São Nicolau e espiavam os meninos em seu comportamento, que tinha a ver com os presentes de Natal. Mesmo quem não acreditasse na inteligência dos bichinhos, sabia que a festa maior dos meninos estava próxima e isto era muito bom.

É de se perguntar o que o cântico atrasado daquela cigarra solitária tem a ver com a minha crônica. Eu explico: motivou-me a pensar e refletir sobre outros fatos e circunstâncias que aconteceram comigo e também com outras pessoas de forma tardia. Cada ser humano poderia contar uma bela história. Vou dar um exemplo bastante sugestivo. Cora Coralina, uma das mais importantes poetisas da literatura brasileira, publicou seu primeiro livro aos 76 anos de idade.

E a Dona Teresa?

Naquele semestre foi minha primeira aula no curso de Engenharia de Produção. Sem conhecer ninguém, sugeri aos acadêmicos que nós nos apresentássemos. Iniciei pela fileira a minha esquerda propositalmente porque desta forma Dona Teresa seria a última a se apresentar. Quando chegou sua vez, eu disse:

– Agora é a senhora! Gostaria que se apresentasse!

Sua fala veio objetiva e sem floreios, deixando clara a sua irritação com a minha forma de falar:

– Meu nome é Teresa, tenho sessenta anos e, por favor, não me chame de senhora!

Dona Teresa  queria receber o mesmo tratamento dos demais acadêmicos e eu tinha exagerado no tratamento, tanto nas palavras como nos gestos.

Rusgas à parte, durante o semestre, Dona Teresa tornou-se a “mãezona” da turma de jovens universitários, dando conselhos e remédios contra todas as doenças a quem necessitasse. Cuidou da jogadora de vôlei que tinha paralisia facial, fazendo massagens no rosto e na alma. Tenho notícias de que até aos professores prestou auxílio psicológico. E a entrada tardia na faculdade de Dona Teresa? – Que nada! Hoje ela é Engenheira de Produção e serve de exemplo a muitas pessoas que desistiram de correr atrás dos sonhos, antes ou após dos sessenta anos. Durante as atribulações da vida é melhor contar as primaveras e não os invernos! Ah! A minha aula aconteceu em meados de fevereiro e ainda havia cigarras cantando num matinho ao lado da universidade.

Na outra história que vou contar não há cigarras. Era Páscoa. No início da década de setenta, o governo brasileiro instituiu o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização). Era um programa que alfabetizava adultos. Eu fui indicado para alfabetizar uma turma de vinte e cinco pessoas. De manhã, eu lecionava para crianças e à noite para adultos, ou seja, pais e filhos eram meus alunos. O MOBRAL foi uma grande oportunidade para aqueles que não tiveram a oportunidade de se alfabetizar em tempos ideais. Eles, também, não se importaram com o atraso porque sempre é hora de aprender.

Em épocas especiais como Natal, Páscoa e aniversário, eu sempre recebia muitos presentes de alunos. Naquela Páscoa, na parte matutina recebi os ovos de páscoa e alguns chocolates e à noite, por incrível que pareça, os adultos não deixaram por menos. Um a um, meio constrangidos, colocaram os presentes sobre a minha mesa. E eu só tinha a agradecer e refletir sobre aquele gesto. Eles queriam se sentir alunos como os seus filhos e disso não abriram mão.

Existe um provérbio que todos  conhecem: “antes tarde do que nunca”, pois é, caro leitor! Só por causa daquela cigarra que cantou fora de época, com um atraso considerável, eu escrevi esta crônica.

Tenha um bom final de semana!

* Poeta, escritor e professor, autor dos livros “Meu canto-amar”; “Girata de espantos”; “Nebulosa de amor”: “Contos e poemas de Natal”; “A sétima caverna”,”De Neu-Zürich a Presidente Getúlio: uma história de sucesso”; “A inserção da língua portuguesa na Colônia Hammonia”: “Terra da fartura: história da colonização de Ibirama”: “Teoria da Literatura”: “IbirAMARes e outros poemas” e “A história das árvores-homens e outras crônicas”. wiese@ibnet.com.br e www.harrywiese.pro.br


Nenhum comentário:

Postar um comentário