O calmante virou febre
* Por
Luciane Evans
Tristeza, ansiedade,
insônia e angústia sem motivos aparentes têm tornado muita gente dependente de
um medicamento tarja preta com índice de dependência maior ou semelhante ao
álcool e à cocaína. Levantamento inédito do Sindicato dos Farmacêuticos de
Minas Gerais (Sinfarmig), obtido com exclusividade pelo Estado de Minas, aponta
que o uso de Rivotril, cujo princípio ativo é o clonazepam, explode na rede
pública das 10 cidades avaliadas, que consumiram juntas mais de 15 milhões de
comprimidos distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em 2012. Chama a
atenção o consumo em cidades pequenas, como Bonfim, na Grande BH, onde só no
ano passado foram distribuídos 70 mil comprimidos para os pouco mais de 6 mil
moradores, uma média de 10 para cada.
A realidade acende o
alerta na classe médica, que tenta encontrar justificativas para os dados que
vão desde falta de tolerância das pessoas em lidar com as frustrações até a
prescrição equivocada dos médicos. A droga, prescrita a quem sofre de ansiedade,
insônia e depressão, é a tarja preta mais consumida no Brasil. Segundo a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), só em 2011 foram 18,45
milhões de caixas com 30 comprimidos (553 milhões de pílulas) vendidas nas
farmácias particulares no Brasil, um aumento de 36% em relação a 2010. Cada uma
pode custar até R$ 10.
Por se tratar de
medicação controlada, só é adquirida com receita. “Os dados da Sinfarmig se
referem aos remédios distribuídos pelo SUS, não contemplam as compras feitas em
farmácias privadas. Por isso, a situação é perigosa. Trata-se de um consumo
expressivo e um grave problema de saúde pública que merece a atenção das
autoridades”, afirma o diretor do sindicato, Rilke Novato Públio, acrescentando
que as doses causam dependência e efeitos colaterais, como sonolência,
dificuldades no processo de aprendizagem, perda da memória e até parada
cardíaca.
“Se me tirarem essa
droga, não dormiria nunca mais. Sou viciada”, avisa Luciana Vieira, de 34 anos,
moradora de Bonfim, na Grande BH. Desde 2007, quando apresentou sintomas de
depressão, ela toma o remédio. “Não conseguia dormir, ficava ansiosa e muito
triste. Desde então, tomo dois comprimidos toda noite”, conta. Ela diz que há
algum tempo a medicação passou a não fazer efeito e o médico optou por outros
antidepressivos associados ao Rivotril. “Aqui na cidade todos tomam. Não temos
muito o que fazer, não há lazer para nós”, reclama Luciana, preocupada com
efeitos da medicação. “Outro dia, não sentia mais os meus braços.”
Nelson Parreiras Lara,
de 57, também morador de Bonfim, conta que há seis anos toma a medicação e tem
aumentado o uso. Hoje toma quatro por dia. Ele mostra os pés inchados, que,
segundo ele, são resultado dos comprimidos.
Preocupada com a
realidade, a recém-empossada secretária municipal de Saúde, Rose Marie Marques,
diz que vai estudar o assunto a fundo. “A quantidade de consultas para a
psiquiatria também é alta. É curioso tantas pessoas usarem uma medicação forte
como essa”, desconfia.
Em Piedade dos Gerais,
a demanda por Rivotril aumenta 10% a cada ano, segundo a Secretaria Municipal
de Saúde. Esta semana, os comprimidos estavam em falta no único posto de saúde
da cidade, mas havia a medicação em gotas. “A demanda é alta. Mais de 70% dos
moradores são dependentes da medicação”, lamenta o secretário de Saúde de
Piedade dos Gerais, Vicente Nicodeno dos Santos. Os profissionais de saúde
dizem estar de mãos atadas. “O número é bem maior. Sabemos que pacientes passam
medicações para os vizinhos e amigos. Além disso, há os que compram em
farmácias até sem receita”, alerta a farmacêutica Simone Amorim. Segundo ela,
uma caixa com 30 comprimidos é suficiente para um mês, “mas poucos tomam uma
pílula por dia. Geralmente, são três ou quatro.”
São pessoas
dependentes há muito tempo. “Não temos o que fazer. Se tirarmos a medicação, é
possível que tenham um surto”, comenta o clínico geral do município, Geraldo
Carlos Caixeta.
“Piedade dos Gerais é
tranquila, mas há uma ansiedade, uma tristeza”, comenta Graça Francisco de
Jesus, de 64 anos, que há sete anos toma os comprimidos. “Meu filho, Rômulo, de
9 anos, teve diagnóstico de depressão. Os médicos receitaram Rivotril, e ele
está dormindo bem e não chora tanto”, conta Gesiane de Oliveira, que durante a
gravidez diz ter tido depressão. “Aqui, quase todo mundo tem.”
Se por um lado, a
ociosidade é apontada como um dos motivos para a explosão do uso de Rivotril em
municípios menores, por outro, nos maiores, como BH e Santa Luzia, o estresse,
somado a diagnósticos equivocados, pode ser o grande vilão. E a tendência,
segundo previsão do Sindicato dos Farmacêuticos de Minas Gerais (Sinfarmig), é
um aumento significativo do consumo da droga neste ano. Só em Belo Horizonte,
onde, segundo o levantamento da entidade, foram distribuídos 8,6 milhões de
comprimidos no ano passado pela rede pública, uma média de 3,7 comprimidos por
habitante, a expectativa é de que esse consumo chegue a 17 milhões, quase nove
pílulas para cada belo-horizontino.
“É, certamente, um
número alto”, reconhece, preocupado, o terapeuta comunitário da Secretaria
Municipal de Saúde de Belo Horizonte, Luciano Carneiro de Lima. Ele, juntamente
com uma equipe do Programa de Saúde da Família (PSF) da capital, fez, em 2009,
uma monografia para o curso de especialização na área, em que constatou que a
maioria dos pacientes que usa benzodiazepínicos, classe de medicamentos da qual
o Rivotril faz parte, não se lembra por que começou a usar a medicação e não
recebeu orientação médica para o uso. “O remédio deveria ter dia certo para
começar e terminar. O ideal é o profissional de saúde começar com uma dose alta
e ir diminuindo”, diz.
Na opinião do
especialista, a realidade da capital reflete um tormento da sociedade. “Vivemos
em um mundo cada vez mais consumista, as pessoas procuram soluções rápidas e
estão pouco tolerantes às frustrações. Por sua vez, os médicos não sabem dar
outras respostas, pois muitos saem despreparados das faculdades e ao verem um
paciente chorando em seus consultórios logo prescrevem a droga”, critica.
A observação é também
a do assessor técnico em saúde mental da Secretaria de Estado de Saúde e
diretor da Associação Mineira de Psiquiatria, Paulo Repsold: “Há ginecologista,
clínico-geral e outros especialistas que prescrevem o clonazepam”.
Na família do advogado
Lourenço Rabelo, de 26 anos, morador de BH, todo mundo usa. “Minha mãe, meu
padrasto, irmão e meus tios. E todos estamos tranquilos. Comecei a tomar
Rivotril há seis meses, por causa da ansiedade e da insônia. Com a medicação,
consigo dormir e acordo bem disposto”, conta.
A preocupação de Paulo
Repsold é que o remédio vicia muito rápido. “Ele é mais fácil de viciar do que
o álcool e a cocaína. O paciente não pode largar a medicação de uma hora para
outra, pois entra em síndrome de abstinência.”
Outro alerta do
especialista é que o Rivotril pode representar um tratamento para depressão
pela metade. “Ele não é um antidepressivo, mas atua associado aos que são. No
entanto, ao medicá-lo para tratar a doença, há o risco de a depressão não estar
sendo tratada. Para a doença, vai funcionar como analgésico, assim, a pessoa
continua deprimida, sem concentração, mas está tranquila e calma”, alerta.
*
Jornalista
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