sábado, 27 de fevereiro de 2016

Competente e precisa descrição da peste

A devastadora pandemia de peste bubônica, que a partir de 1347 assolou, praticamente, toda a Europa, causando milhões de mortes, teve, em Giovanni Boccaccio, um dos mais perfeitos e competentes cronistas. Sua obra-prima, o “Decamerão”, é um dos documentos mais confiáveis, detalhados e verossímeis desse flagelo. Nenhum historiador conseguiu sequer chegar perto da objetividade demonstrada por esse escritor e num livro de ficção, diga-se de passagem. Mesmo tratando especificamente da pandemia apenas no início da sua obra, a peste sempre esteve presente em toda a narrativa, como pano de fundo de todo o enredo. Seu relato “apresenta” a doença para o leitor, do presente e do futuro, com meticulosidade poucas vezes vista em qualquer outro autor.

Em alguns pares de parágrafos, Boccaccio explicou como a peste se manifestava, como evoluía, quais os sintomas que apresentava etc.etc.etc. Mas não se limitou a esses aspectos, digamos, “médicos” da enfermidade. Descreveu, de maneira nua e crua, a reação das pessoas diante da perspectiva de uma morte horrenda. Ademais, ressaltou a ineficácia, e portanto a inutilidade, das medidas adotadas para combater a peste, principalmente as de caráter espiritual, já que havia praticamente consenso de que a epidemia era “castigo divino” que requeria arrependimento dos pecados, com rezas, procissões, promessas e todo o arsenal religioso recomendado pela Igreja Católica, religião majoritária ou, para ser exato,  praticamente única naquele tempo e lugar.

Boccaccio abordou, também, a ação de uma Medicina empírica e ineficaz que, a rigor, nem merecia esse nome, com seus “remédios” que nada remediavam e suas práticas até absurdas. São de se notar suas descrições de dois tipos opostos de reações por parte das pessoas ameaçadas pela implacável doença, incompreensível para elas e que consideravam como uma espécie de “roleta russa”, que poderia atingi-las ao sabor do acaso. De um lado, estavam os que se entregavam a uma luxúria desenfreada, passando a beber sem moderação e a praticar todos os excessos, sobretudo sexuais, no afã de “aproveitar” a vida, antes que a morte os colhesse. No outro extremo, estavam os que se recolhiam em grupos, orando fervorosamente, praticando o ascetismo e arrependendo-se até de pecados imaginários. Boccaccio destaca que entre essas duas correntes de comportamento havia uma terceira, que ora se entregava à luxúria e ao desregramento, ora fazia promessas, jejuns e autoflagelações.

O autor do “Decamerão” escreve, em determinado trecho: “(...) Tínhamos já atingido o ano ... de 1348, quando, na mui importante cidade de Florença... sobreveio a mortífera pestilência... Nenhuma prevenção valeu, baldadas todas as providências dos homens... Nem conselho de médico, nem virtude de mezinha alguma parecia trazer a cura ou proveito para o tratamento (...)”  Destaca, também: “(...) E não valendo contra ela nenhum saber nem providência humana (como a limpeza da cidade de muitas imundícies ordenadas pelos encarregados disso e a proibição, a todos enfermos, de entrarem nela, além dos muitos conselhos dados para conservar a salubridade), nem valendo, tampouco, as humildes súplicas dirigidas a Deus pelas pessoas devotas, não uma vez, mas muitas, através de procissões e de outras formas de manifestação de fé, quase no início da primavera do ano citado (1348), a peste começou horrivelmente e em assombrosa maneira, a mostrar seus dolorosos efeitos (...)”.

A seguir, com a meticulosidade de um infectologista (que obviamente não era), com objetividade científica de causar inveja a profissionais de saúde atuais, Boccaccio observa a diferença entre a epidemia que testemunhou e as similares ocorridas na Ásia, além de descrever os sintomas. Escreveu: “(...) A peste, em Florença, não teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saía pelo nariz, fosse de quem fosse, era sinal evidente de morte inevitável... Apareciam no começo, tanto em homens como em mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas inchações... a que o povo chamava de bubões... Em seguida, o aspecto da doença começou a alterar-se. Apareciam manchas escuras ou pálidas nos doentes. Nuns, eram grandes e espalhadas; noutros, pequenas e abundantes (...)"
  
Numerosas levas de pessoas, aterrorizadas, desesperadas, em pânico saíam de Florença e das outras cidades atingidas pela pandemia, vagando pelos campos ou reunindo-se nas igrejas. Foi num desses caóticos êxodos em massa que Boccaccio situou o inusitado grupo que ele criou para a narrativa do “Decamerão”. Note-se que as dez pessoas que o escritor “designou” para narrarem as cem novelas do livro, têm uma simbologia tanto numerológica, quanto mística. As sete moças do grupo, por exemplo, representam as Quatro Virtudes Cardinais – Prudência, Justiça, Fortaleza, Temperança – e as Três Virtudes Teologais - Fé, Esperança e Caridade. Já os três homens representam a Divisão da Alma em Três Partes: Razão, Ira e Luxúria da tradição helênica.

As sete mulheres, cuja mais idosa era Pampinéia, tinham idades entre 18 e 28 anos. Eram bonitas, de origem nobre e seu comportamento era honesto. Antes de deixarem Florença, para fugirem da peste, agruparam-se, por acaso, na igreja de Santa Maria Novela. Ali, fizeram um pacto e resolveram continuar juntas, acontecesse o que acontecesse. A seguir, surgiram os três homens, com idades a partir dos 25 anos. Eram agradáveis, bem apessoados e com esmerada educação. Eles foram à igreja com um objetivo específico: para procurarem suas respectivas amadas, que, aliás, eram três das sete moças, ali reunidas. Foi quando o grupo, agora de dez, resolveu fugir de Florença, abrigando-se num castelo, dando início, de fato, ao genial enredo do “Decamerão”. Por tudo isso, considero esse livro um primor literário, original e inovador, que por romper com a mítica literatura medieval, lançou as verdadeiras bases do realismo.

Boa leitura.

O Editor.

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