A
persistência do ódio na sociedade brasileira
* Por
Leonardo Boff
É fato inegável: há
muito ódio, raiva, rancor, discriminação e repulsa na sociedade brasileira. Ela
sempre existiu de alguma forma. Ou alguém acha que os milhões de escravos
humilhados e feitos “peças” e as mulheres à disposição da volúpia sexual dos
patrões e de seus filhos, não provocavam surdo rancor e profundo ódio? É o que
explica os centenas e centenas de quilombos por todas as partes no Brasil. E o ódio dos patrões que com o
chibata castigavam seus escravos desobedientes no pelourinho?
O ódio pertence à zona
de mistério. A própria Bíblia não sabe explicá-lo e o vê já presente desde o
começo, no jardim do Éden; o primeiro crime ocorreu com Caim que por inveja,
que produz ódio, matou a seu irmão Abel. O mandamento era claro: ”Amarás o teu
próximo e odiarás o teu inimigo”(Levítico 19,18; Mateus 5,43). O ódio é inimigo
dos homens e de Deus e ele semeia a cizânia na terra (Mt 13,19).
Mas eis que vem Jesus
e reverte a lógica do ódio: ”Amai vossos inimigos e orai pelos que vos
perseguem” (Mt 5, 44). Ele mesmo sucumbiu ao ódio de seus inimigos mas,
aceitando livremente a morte, “venceu a
morte pela morte” e assim derrubou “o muro da inimizade que dividia a
humanidade” (Ef 2,14-16). Prega e vive o amor incondicional para amigos e
inimigos. Inaugurou assim uma nova etapa de nossa humanização.
Mas esse ideal nunca
se transformou em cultura nos países cristianizados. Estamos ainda no Velho
Testamento do “olho por olho, dente por dente”.
No Brasil a raiva e o
rancor histórico foi acrescido depois das eleições de 2014. Houve quem não
aceitou a derrota e deslanchou uma
torrente de raiva e de ódio que
contaminou não apenas o partido vencedor, mas toda a sociedade. Inegavelmente
criou-se um consenso ideológico-político de alguns meios de comunicação que,
com total desfaçatez, difundem esse sentimento. O que leva um radialista da Rádio Atlântica FM,
ligada à RBS gaúcha, conclamar a população a “cuspir na cara do ex-Presidente
Lula” senão um ódio explícito e incontido? A verdadeira perseguição judicial
que Lula está sofrendo, tentando
enquadrá-lo em algum crime, é movida não tanto pela fome e sede de justiça, mas
pela vontade de punir, de desfigurar seu
carisma e liquidar sua liderança. Grassa um maniqueísmo avassalador que
amargura toda a vida social. Bem dizia Bernard Shaw: ”o ódio é a vingança dos covardes”.
Mas tentando ir um
pouco mais a fundo na questão do ódio, precisamos reconhecer que ele se enraíza
em nossa própria condição humana, um feixe de contradições. Somos, por
natureza, e não por desvio de construção, seres contraditórios, compostos de
ódios e de amores, de abraços e de rejeições. É a escolha que fizermos que irá
dar rumo à nossa vida: ou a benquerença ou
a aversão. Mesmo escolhendo o
amor, o ódio nos acompanha como uma sombra sinistra. Se não cuidamos dele, ele
invade nossa consciência e produz sua obra nefasta.
Esse realismo o
encontramos na Bíblia. Mas também num pensador como Bertrand Russel que
observou com acerto: ”o coração humano tal como a civilização moderna o
modelou, está mais inclinado para o ódio do que pra a fraternidade”. Lógico, se
ela colocou como eixo estruturador a concorrência e não a colaboração e a luta
de todos contra todos em vista da acumulação privada, entende-se que predomine
a tensão, a raiva, a inveja a ponto de o lema de Wall Street ser : ”greed is
good”: a cobiça é boa.
Mas há um ponto que precisa ser referido, observado
já por F. Engels quando escreveu uma introdução ao livro de Marx sobre “A luta
de classes na França”: ”Se houver alguma
possibilidade de as massas trabalhadoras chegarem ao poder, a burguesia não
admitirá a democracia sendo até capaz de golpeá-la”. Ora, através de Lula, o PT
e seus aliados, vindo das massas trabalhadoras, chegaram ao poder. Isso é
inadmissível pelos “donos do poder” (R. Faoro).
Estes procuram inviabilizar o governo de cunho popular, desconsiderando
o bem comum.
Aqui valem as palavras
sábias do velho do Restelo de Camões: “Ó glória de mandar, o vã cobiça/Desta vaidade
a quem chamamos fama./Ó fraudulento gosto, que se atiça/Com uma aura popular
que honra se chama” (Cântico IV, versos 94- 95). Por detrás da busca ”da glória
de mandar” e do poder, revestido de raiva e de
ódio, se esconde, atualmente, a vontade
daqueles que sempre o detiveram e que agora o perderam e fazem de tudo
para recuperá-lo por todos os meios possíveis.
*
Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o ser humano como
projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger a vida” (Record, 2010) e “A oração
de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso.
Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on
transformation”, “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz” (Vozes, 2009).
Foi observador na COP-16, realizada em Cancun, no México.
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