Cala a boca, jornalista!
* Por
Elaine Tavares
Ser jornalista é
padecer. A profissão é, sem qualquer dúvida, filha do capitalismo. Nasce para
“embelezar” o anúncio das mercadorias e com o andar da carruagem acaba fazendo
do jornalismo também mercadoria. Mas, como bem diz Adelmo Genro Filho, que
pensou uma teoria marxista do jornalismo, pode ser bem mais do que isso. Na sua
forma/mercadoria está contida a contradição e, por isso mesmo, vez em quando,
seja por ação do jornalista ou da realidade mesma, ele assume a forma
conhecimento. E é aí que pode gerar o pensamento crítico, instrumento único da
transformação.
No Brasil, a profissão
passa por uma fase agônica. Nos grandes meios de comunicação pouco se salva. A
regra é escrever ao estilo de manual de geladeira. O que escapa é a sempre
existente exceção, nada mais que isso. No geral, os jornalistas fazem um
jornalismo chapa-branca, oficialista, estilo porta-voz. Priorizam as fontes
ritualísticas, que vão dizer aquilo que o veículo quer que digam. Ao mesmo
tempo, esses meios comerciais silenciam as vozes dissonantes, e quando a
realidade se impõe, não sendo possível calar os que fazem a crítica, os
ridicularizam ou criminalizam. Basta pensarmos nas coberturas das ocupações de
terras rurais, espaços urbanos, escolas em vias de desaparição ou os movimentos
pela mobilidade urbana e o movimento indígena. Os que lutam são os bandidos e
os que criam o caos, são os mocinhos. Esse é o jogo.
Quem quer fazer
jornalismo de verdade, narrando a vida na sua imanência, com descrição,
contexto histórico e impressão, tem de saltar fora do barco da mídia produzida
nos grandes meios. Hoje, com as novas tecnologias, isso ficou mais fácil,
através dos blogs pessoais, ou das páginas de sindicatos e movimentos sociais.
Mas, apesar das melhorias das condições objetivas pra produzir jornalismo sem
censura, os jornalistas esbarram em outras variantes que os amarram.
Uma elas é a força do
poder econômico e político dos alvos da crítica. Paulo Henrique Amorim, por
exemplo, que é um jornalista conhecido nacionalmente e que mantém um blog
pessoal independente, já foi condenado à prisão por conta de matérias
publicadas ali. Falar de políticos, políticas e denunciar falcatruas dos
poderosos gera processos e outras punições, o que constitui um bom motivo para
calar a boca de qualquer um. Sem a cobertura de uma empresa, com departamento
jurídico bom, o jornalista solitário está completamente exposto e desprotegido.
Qual blogueiro – que não tenha fama nem dinheiro – pode arcar com pesados
custos judiciais?
Outra forma de calar o
jornalista é arruinar sua reputação, como tentam fazer com o Leonardo Sakamoto,
vítima mais recente de manipulação e calúnia. Suas palavras são distorcidas e
ele sofre frequentes e sistemáticas agressões através das redes sociais. Ele também foi processado por ter simplesmente
divulgado uma lista de pessoas e empresas que mantinham trabalhadores
escravizados. Ou seja, informação da mais importante relevância social. Só não
se deu mal porque pegou um bom juiz pelo caminho.
E assim poderíamos
seguir falando de outras dezenas de casos, como o do Lúcio Flávio Pinto,
jornalista amazonense que há décadas denuncia os desmandos praticados na
Amazônia. Ele tem tantos processos nas costas que quase não pode sair do
estado, sempre tendo de estar em alguma audiência referente a um ou outro. Um
exemplo raro de jornalista de verdade, quase solitariamente enfrentando as
forças gigantes do agronegócio e da política da destruição.
Exemplos como esses,
se por um lado inspiram a uma prática do bom jornalismo, por outro lado também
amedrontam aqueles que já saem da faculdade com a boca fechada pela
autocensura, aprendida nos bancos escolares. Navegar contra as correntes não é
coisa fácil. Exige coragem demais. E quem pode tê-la nesse universo duro de
necessidades de manutenção da vida?
América Latina sangra
Mas, se no Brasil as
batalhas no geral estão no campo da intimidação e dos processos judiciais, em
outros espaços geográficos exercer a profissão de jornalista e buscar narrar a
realidade do que os poderosos querem esconder pode significar a perda da vida.
Um dos casos mais escabrosos é o México, país que tem por sina estar colado aos
Estados Unidos, e por isso mesmo enfrentar desde séculos a dominação cultural,
econômica e política mais pesada. Ali, ser jornalista é literalmente arriscar a
vida.
Na última semana, o
bárbaro assassinato da jornalista Anabel Flores Salazar, colocou o país em
destaque mundial. A trabalhadora do jornal El Sol de Orizaba, de 27 anos e mãe
de dois filhos, foi sequestrada dentro de casa, sofreu torturas e seu corpo foi
abandonado numa autoestrada. Ela foi a morte número 16 – desde o ano 2000 - na
estatística dos jornalistas assassinados no estado de Vera Cruz, o mais
violento do México para o exercício do jornalismo. Em todo o país, na última década, mais de 90
profissionais de imprensa foram assassinados e 23 estão desaparecidos. Todos
estavam envolvidos em denúncias de temas quentes como os cartéis de drogas,
prostituição, tráfico de pessoas, danos ao meio ambiente. Cinicamente, os
governantes ainda tentam atribuir aos jornalistas ligações com o crime
organizado, visando “justificar” as mortes como acertos de contas ou coisas do
tipo.
Outro assassinato que
gerou comoção no México, no mesmo estado de Vera Cruz, foi o do jovem
repórter-fotográfico Rubén Espinosa. Ele chegou a sair do estado por conta das
ameaças e perseguições, mas foi alcançado na capital, Cidade do México, onde
tombou com dois tiros no peito e um na cabeça. Seu “crime”? Cobrir os protestos
sociais e estudantis, dando foco aos trabalhadores e estudantes em luta. Ousou
caminhar com os que lutavam contra o governo e o sistema. Pagou caro. E, assim
como Rubén ou Anabel, qualquer um que pratique o jornalismo no México, está
sujeito à morte e à violência. Dura
decisão precisam tomar os jovens jornalistas.
Honduras, na América
Central, também é outro foco de ataque sistemático ao jornalismo de verdade. Se
o profissional está integrado nos grandes meios, cobrindo as pautas
ritualísticas de propaganda do sistema e do governo, tudo bem. Mas, se resolve
mostrar a vida que se expressa nas ruas, aí o bicho pega.
Depois do golpe de
2009, que arrancou da presidência Manuel Zelaya e instalou um governo
ilegítimo, a virulência contra os jornalistas foi às alturas. Desde então já
foram contabilizados mais de 30 assassinatos de profissionais da imprensa e se
voltarmos a 2003, quando da morte do jornalista German Rivas, o número sobe
para 41. Não bastasse toda a violência que se abate sobre aqueles que insistem
em mostrar a verdade sobre os fatos, os hondurenhos ainda convivem com a
impunidade. De todos os casos de assassinato de jornalistas 91% não foram
resolvidos. Ou seja, os assassinos e os mandantes seguem soltos. Apenas dois
deles receberam sentença.
E assim segue a vida
do jornalista, não só na América Latina, mas no mundo. Tirando os casos de
morte em conflitos armados, a maioria dos que são assassinados o são em função
daquilo que divulgam e que alguém do poder queria que ficasse escondido. Esse é
drama de quem procura desvelar a realidade e dura é decisão de quem opta por
seguir o caminho da margem. Em países como o México é a morte mesmo, o fim
violento da vida. E em países como o Brasil, a morte pode ser mais lenta e mais
vil, uma vez que vai se minando a resistência da pessoa até o limite.
De qualquer sorte, é a
violência explícita contra o jornalista, aquele que decidiu fazer do seu fazer
um espaço de conhecimento e formação. Esses estão na berlinda e, no geral,
abandonados pela maioria dos colegas que servem ao poder, pelos sindicatos, que
seguem não sabendo lidar com os trabalhadores que estão fora das redações,
desempregados ou atuando em solidão, pelas federações nacionais, que se limitam
a divulgar a violência e fazer notas, e pelas confederações internacionais que
igualmente são ineficazes no combate ao grande capital.
O caminho para a
proteção dos jornalistas que percorrem as estradas vicinais, fora do núcleo de
poder, precisa ainda ser aberto à facão. Primeiro, com a compreensão de que os
jornalistas são também trabalhadores, vendem sua força de trabalho, não têm os
meios de produção. E mesmo aqueles que hoje estão pejotizados (transformados em
Pessoa Jurídica) tampouco são donos dos meios, uma vez que estão visceralmente
ligados às empresas que os contratam. E, segundo, assumindo essa condição de
trabalhadores, partir para a luta coletiva. O sindicato ainda é o instrumento
que consegue organizar a batalha dos trabalhadores contra o capital e ele tem
de ser reconhecido como tal. A partir daí, com a luta organizada e os
trabalhadores unificados, será possível não apenas enfrentar os patrões, os
assassinos e os predadores da verdade, mas também garantir que mais jornalistas
caminhem pelas veredas do jornalismo como conhecimento.
Batalha dura, mas
necessária, que deve ser travada também em honra de pessoas como Anabel, Rubén,
Lúcio Flávio e tantos outros que deram e dão sua vida para tornar esse mundo
melhor.
* Jornalista
de Florianópolis/SC
Nenhum comentário:
Postar um comentário