Senador
Delcídio do Amaral: o flagrante virou eterno
* Por
Urariano Mota
Está tudo muito claro,
sem dúvida o senador Delcídio do Amaral cometeu crimes. Mas se observarmos bem,
a prisão do primeiro senador no tempo democrático se deu em circunstâncias,
digamos, excepcionais. Antes, na ditadura, os atos eram mais simples:
cassavam-se mandatos, fechava-se o Congresso que desejava ser soberano,
prendiam e sumiam com os corpos de parlamentares. Mas nesta semana, a prisão de
um senador no exercício do mandato ganhou cores mais, como direi, absurdas da
esperteza nacional.
Um crime que
necessitava ser flagrante, virou contínuo, eterno, ou permanente. A flagrância virou fragrância, mau cheiro de
coisa mais podre. Mas como?
Quando pesquiso, sou
informado de que a decisão da 2ª. Turma do STF se baseou no parágrafo 2º do
artigo 53 da Constituição Federal. O dispositivo diz, ou dizia, a esta altura não
sabemos ao certo, que parlamentares não podem, ou não podiam ser presos, a não
ser em casos de “flagrante de crime inafiançável”. No entanto, de acordo com o
ministro Teori Zavascki, o senador Delcídio passou a ser acusado de integrar
uma organização criminosa, ou seja, segundo ele, um crime permanente. E para
coroar o enquadramento legal., o ministro citou outro ministro, um voto do
ministro Gilmar Mendes onde se fala que, em casos de crime permanente, o
flagrante pode ser feito a qualquer tempo. Lindo, sábio, erudito e maravilhoso.
Isso quer nos fazer
crer que o flagrante perdeu o significado da língua portuguesa. A saber, vamos
ao dicionário: “Flagrante - substantivo masculino - Ato ou fato observado ou
comprovado no momento mesmo em que ocorre; ação notada e/ou registrada no
momento da ocorrência”. Ou como adjetivo: “visto ou registrado no próprio
momento da realização”. Perdoem se
buscamos o sentido das palavras na tradição e uso corrente da língua
portuguesa.
Perdoem, porque, pelo
visto, o poder de interpretar palavras e situações é de uso exclusivo do
Supremo Tribunal Federal, e do procurador Rodrigo Janot., não vamos cometer um
crime de lesa-autoria. Melhor, de lesa-majestade. Esse poder de redefinição já
havíamos notado desde o tempo da teoria do “domínio do fato”, no julgamento do
chamado mensalão, lembram? A partir dali, o ato arbitrário de interpretar
chegou ao perigoso terreno de que para condenar um réu, bastava a presunção de
culpa. Simples. Se ele não furtou, teria contribuído para o furto. E se não
contribuiu de modo direto, teria contribuído indireto. E se não contribuiu
indireto é porque o réu seria tão esperto, que nem deixou pistas. Portanto,
condene-se. Eu não invento, consultem a memória, e me falem se assim não
foi.
Agora, neste último
caso, de livre interpretar a constituição federal, na prisão do senador
Delcídio do Amaral, chamo a atenção para a professora Margarida Lacombe, da
UFRJ. Ela é uma pessoa que alia inteligência, cultura, conhecimento e coragem. Vale a pena ouvi-la, num trechinho final do
programa Em Pauta da Globo News no dia em que o senado confirmou a nova
definição de flagrante do STF.
“Por mais impactante
que seja tudo isso, que de fato é, quando a gente escuta a gravação, a gente
deve pensar por que essa decisão de hoje, do Supremo Tribunal Federal,
chancelada pelo Senado Federal, pode provocar enquanto precedente pro nosso
país? A Constituição Federal, em termos da imunidade parlamentar, tratando-se
de uma democracia, prevê que um parlamentar somente pode ser preso diante de
flagrante delito ou de crime inafiançável. No meu modo de ver, eu acho que o
Supremo Tribunal Federal pecou nesses dois requisitos, que são os únicos
possíveis pra exceção, que é a questão da flagrância, do flagrante delito, ou
da inafiançabilidade. O ministro Teori Zavascki falou no estado de flagrância.
Esse estado de flagrância é a fórmula que eles mais ou menos encontraram pra
enfrentar essa questão. E tentar caracterizar esse ato todo, esse fato que a
gravação transmite, como crime de organização criminosa, que eles entendem, a
decisão do Supremo, que é um crime permanente. Como de qualquer organização
criminosa, ela seria composta por quatro ou mais pessoas, como diz a lei de
2013, que foi uma lei até criada depois do mensalão pra criar esse tipo de
organização criminosa, que ali só se falava de quadrilha. Então quatro ou mais
pessoas que têm vontade em comum, os mesmos desígnios de vontade, e essa
organização seria estruturada e organizada em termos com a básica de divisão de
tarefas. Então eles têm que juntar quatro ou mais pessoas, e aí foram buscar
até... o Delcídio, o banqueiro, o advogado e o assessor, o chefe de gabinete,
que era até uma figura, que eles dizem ali que tinha uma posição privilegiada..
enfim, pra compor esses quarto integrante, pra caracterizar a organização
criminosa, e com isso poder desenvolver essa ideia de um estado de flagrância.
Eu vejo isso muito complicado, em termos técnicos. Como é que se pode sustentar
esses estado de flagrância, apesar da gente ter visto que houve uma situação
bastante específica dele estar ali arrumando, vendendo facilidades pra
organizar, enfim, a delação premiada do Nestor Cerveró? Então eu acho que o
Supremo Tribunal Federal foi atingido na sua reputação, na medida em que os
vídeos mostram que o Delcídio dizia que teria um acesso muito fácil aos
ministros, cita o nome do próprio Teori Zavascki, como dizendo assim, ‘ah, eu
já estive com ele, e também já estive com o Dias Toffoli”, sugerindo que já
tinha havido algum tipo de facilidade, e o Supremo Tribunal Federal reagiu. Eu
acho que reagiu nos termos que a gente diz, decidiu com base em razões de segunda ordem. Ou seja, (mais) com
uma estabilidade institucional, do que propriamente da matéria”.
Notem que para a
proposta de Delcídio dar certo, Cerveró precisaria ser solto antes, pois só
então poderia fugir. Mas precisaria conseguir um habeas corpus. E para isso,
bom, Delcídio teria que conversar com alguns ministros. Ele afirmou isso, na
gravação da conversa que seguiu como prova. Daí que a reação do Supremo, como
assinala a professora Margarida Lacombe, se deu por razões de segunda ordem.
“Não somos estes que Delcídio falou”, teriam querido dizer. E se podemos fazer
uma análise psicológica, à luz da experiência de escritor, digo que a voz de
Gilmar Mendes fraqueja, quando nega a fala do senador. Gilmar perde o ar de
imperador, arrogante, de queixo erguido. O mesmo se dá com Dias Toffoli, quando
ele acompanha a negação na base de, o que o senador mentiu pra Gilmar
Mendes, também mentiu pra mim. “Me põe
nessa, por favor”, parece dizer.
E concederam o pedido
por Rodrigo Janot, que cometeu este arrazoado:
“A Carta Magna não
pode ser interpretada de modo a colocar o Supremo Tribunal Federal, intérprete
e guardião máximo da Constituição Federal, em posição de impotência frente à
organização criminosa que se embrenhou dentro do Estado...
A interpretação
literal do § 2º do art. 53, descontextualizada de todo o sistema, transformaria
a relevante garantia constitucional da imunidade parlamentar em abrigo de
criminosos, os quais vêm sabotando relevante investigação criminal e instrução
processual em curso"
Ou seja, como não se
pode mudar a Constituição Federal com uma penada, muda-se a sua interpretação.
O poder de interpretar é a interpretação de quem estiver no poder, judiciário.
O que significa: contra quem se aliar, não importa quão distante, da esquerda,
toda interpretação é livre, até mesmo contra a língua portuguesa. O que
concluímos, enfim: salve-se quem puder. A constituição muda conforme o vento
político da oposição.
*Publicado,
originalmente, no Vermelho
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
O jogo da linguagem está ajudando a prender.
ResponderExcluir