Cunha taí? Ejeí upegui Cunha
* Por
José Ribamar Bessa Freire
É. É isso mesmo. É
assim que se diz em língua guarani "Fora Cunha": Ejeí upegui Cunha. E
já que o país é multilíngue, o grito em português pode ter sido traduzido não
só ao guarani, mas a dezenas de outras línguas faladas por índios, quase todos
bilíngues, que nesta quarta-feira (16) ocuparam o teto do Congresso Nacional.
Eles foram lá para denunciar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 215),
cujo Pai - Vitória na Guerra! - é o presidente da Câmara de Deputados, Eduardo
Cunha (PMDB vixe vixe), o mafioso da facção ruralista enlameado por falcatruas
até o último fio de cabelo, e a essas alturas a única figura em torno da qual
se pode costurar a unanimidade ou pelo menos o diálogo pela dignidade nacional.
Eram cerca de 1.500
índios de 139 etnias, participantes da I Conferência Nacional de Política
Indigenista, realizada no Centro Internacional de Convenções de Brasília de 14
ao 17 de dezembro. Na terça (15), a presidente Dilma foi lá dizer que era
contra a PEC 215, mas prudentemente não levou sua ministra da Agricultura Kátia
Abreu, que namora mesmo é as terras indígenas. O Diário do Amazonas publica
agora aquilo que os jornalões de circulação nacional silenciaram sobre a
Conferência Nacional, o "Fora Cunha" e o "E aí,
Dilma?" Não deram sequer uma
notinha. Ai vai.
Cunha ainda taí?
Por volta das 9 horas
os índios chegaram ao Congresso Nacional. Queriam interpelar os parlamentares
sobre a PEC 215 do agronegócio que muda a Constituição e impede a demarcação de
terras indígenas. Não puderam entrar no prédio. Retiraram, então, a proteção
lateral, acessaram a rampa e subiram na cobertura do Congresso, dançando e
cantando com maracás, bordunas, lanças e faixas com "Fora Cunha",
"Não à PEC 215", "Democracia é demarcar as terras
indígenas". Mas Cunha não tava nem aí.
No início da
manifestação, havia apenas um vigilante. Depois, chegaram efetivos da Polícia
Legislativa que ficaram observando, barraram a passagem de quem não era índio e
no final negociaram com os líderes do movimento a descida para o gramado, o que
ocorreu às 11h30, quando os índios voltaram à Conferência Nacional, onde
durante quatro dias discutiram as políticas do Estado brasileiro relacionadas à
demarcação de terras, saúde, educação, sustentabilidade, línguas e culturas
indígenas, patrimônio e memória.
A abertura oficial da
Conferência, na segunda-feira, foi feita pelo ministro da Justiça, Eduardo
Cardozo, que destacou "a primeira vez que acontece um debate franco entre
povos indígenas e o Governo" e se pronunciou contra a PEC 215 e a favor
das demarcações, em mesa coordenada pelo presidente da Funai, João Pedro
Gonçalves, na qual discursaram a Procuradora da República, Débora Duprat e o
advogado Terena, Luís Eloy. Houve consenso sobre o caráter inconstitucional da
PEC 215, que se aprovada no Congresso será derrubada no Supremo Tribunal
Federal, apesar de Gilmar Mendes (vixe vixe), Dias Toffoli (vixe vixe) e Edson
Facchin (vixe vixe).
Durante quatro dias,
representantes indígenas de todo o país e observadores discutiram quase 5 mil
propostas que haviam sido formuladas por mais de 30 mil índios em suas
comunidades nas etapas locais e regionais realizadas nos últimos meses. O
Caderno de Propostas foi debatido pelos participantes em rodas de conversa em
torno de eixos temáticos. O objetivo era avaliar a ação do governo relacionada
aos direitos indígenas e propor diretrizes para a política nacional
indigenista.
E aí, Dilma?
"Política
Indigenista Hoje" foi justamente o tema da mesa magna no primeiro dia (14)
coordenada por Luis Titiah Pataxó Hãhãhãe, da qual participaram o presidente da
Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Antônio Carlos Souza Lima, este locutor
que vos fala e Sônia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas
do Brasil (APIB). Ela se referiu a 182 medidas anti-indígenas defendidas pelos
ruralistas que estão tramitando no Congresso e cobrou do Governo ações mais
concretas:
- Nós sempre
acreditamos na palavra dada. É tradição nossa acreditar na palavra dada.
Escutamos muitas autoridades do Governo se pronunciarem contra a PEC 215. Mas
nós não sentimos, na prática, a efetividade dessa fala. Como acreditar no
Governo que se pronuncia contra a PEC 215, mas ao mesmo tempo decreta uma lei
antiterrorismo, que criminaliza e prende as lideranças que defendem seu
território? A relação do Estado com os povos indígenas precisa ser mudada.
Estamos aqui pra pactuar um novo rumo de respeito, de aliança e de cumprimento
de promessas.
Muitas promessas foram
feitas no segundo dia (15), no final da tarde, pela presidente Dilma que foi
até o Centro de Convenções conversar com os índios. Ela prometeu criar o
Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) - uma demanda antiga do
movimento indígena, além de demarcar terras, criar a Rede Brasileira de
Educação Superior Intercultural Indígena e ampliar os quadros da Funai com a
realização de concursos. Foi recebida com aplausos e gritos de "Não vai ter
golpe" e "Fora Cunha". Se estivesse acompanhada por Kátia Abreu,
teria sido vaiada e aí sim a notícia seria dada nas primeiras páginas dos
jornais.
Na saudação à
presidente, o líder indígena Neguinho Truká reforçou o discurso de Sônia
Guajajara e insistiu na necessidade de estabelecer um pacto com Dilma:
"Não aceitamos o impeachment que é um golpe no estado democrático, mas
queremos que a senhora entenda nosso clamor e nossas necessidades". Ele
cobrou a demarcação de terras e a consulta prévia aos povos indígenas sobre
grandes empreendimentos que afetam seus territórios.
Desconfiados e com um
pé atrás, alguns líderes duvidaram. "Não é possível confiar 100% no
discurso de Dilma", declarou Maximiliano Menezes, presidente da
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). O
movimento indígena quer ver para crer.
Saca fora!
A Conferencia encerrou
na quinta e já na sexta (17) o Diário Oficial publicou decretos de Dilma
criando o CNPI e homologando quatro terras indígenas, todas no Estado do
Amazonas, somando 246 mil hectares. Foi um avanço, mas o Conselho criado é
apenas consultivo e não deliberativo como os índios queriam. Quanto à
demarcação, os índios esperam que sejam desengavetados outros processos das
Terras Indígenas Tapeba, Munduruku e, sobretudo, Guarani-Kaiowá, foco de
conflitos responsáveis por assassinatos de líderes indígenas cometidos por
milícias particulares. Há 45 terras do povo Guarani-Kaiowá aguardando andamento
na Funai.
Enquanto isso, sugiro
que as organizações indígenas - COIAB, FOIRN, APIB - confeccionem um grande
mural com "Fora Cunha" escrito em todas as 200 línguas indígenas
faladas no Brasil. Quem sabe poderão ser assim ouvidos pelo japonês da Polícia
Federal. Em Nheengatu, segundo o dicionário de Stradelli, "saca" ou
"musaca", que foi incorporado ao português regional da Amazônia,
significa "Cai fora , "Vaza". Saca fora, Cunha!
P.S. 1 -
"Política de línguas: o primo pobre da política indigenista" - esse
foi o título da nossa fala. A questão de sobrevivência é tão grande que as
línguas são relegadas muitas vezes a um segundo plano pelo próprio movimento.
Agradeço a Joel Kuaray, meu aluno de História e meu professor de guarani, pelos
ensinamentos. As fotos são de Mário Villela, Carolina Cruz, Marianna Holanda e
Wilson Dias.
P.S. 2 - Durante a I
Conferência Nacional, como parte da programação, houve a feira de artesanato
indígena, com mais de 40 artesãos de diferentes etnias que expuseram colares,
cestarias, bordunas, remos, brincos, cachimbos, arcos, flechas, redes,
esteiras, gamelas, pilões, farinheiras, maracás e outros objetos de arte que
formam parte do patrimônio indígena.
*
Jornalista e historiador
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