sábado, 19 de dezembro de 2015

Onde estão as flores de Dona Vicentina?


* Por Sônia Pillon


A Afonsina ficou órfã muito cedo e foi criada pela avó Vicentina, que tinha múltiplos talentos. Era uma típica senhora “prendada”. Ela dava um show na cozinha, fazia doces e compotas caseiras como ninguém e ainda era exímia no tricô, crochê e bordado… Mas o que mais causava admiração pela dona Vicentina, além dos limites do portão, eram as orquídeas que cultivava. Mais do que as rosas, que além de adornar o jardim, tinham o poder de atrair abelhas e borboletas. Ah, e cigarras também!

Afonsina sempre contava que, quando o sol da manhã irradiava luz, não raro assanhava as cigarras, que vinham cantar na sua janela. Faziam o papel de despertador ecológico, só que com um toque poético… Na época, frequentava a casa dessa minha amiga, especialmente antes das provas de Matemática. Perdi a conta das vezes em que acompanhei os cuidados da avó dela com suas relíquias vivas, coloridas e perfumadas.

Depois que terminamos “adolescentamos”, amadurecemos e a vida de cada uma seguiu seu curso. Soube bem mais tarde que com a morte de dona Vicentina, com setenta e poucos anos, os parentes “reapareceram” e, depois de muita briga pela herança, a casa foi finalmente vendida… Afonsina pouco depois casou e foi morar no Rio.

Essa semana senti uma nostalgia me apertando o peito. Esse reumatismo vive me pregando peças, mas ontem acordei e decidi dar uma volta. Chamei um táxi e pedi para me levar no bairro onde morava a minha amiga de infância. Fiquei rememorando, respirando passados. Vida correu, tropeçou, caiu e se levantou, assim como eu. Águas rolaram…

Chegamos defronte à casa de dona Vicentina. Desço devagar e o meu coração começa a bater mais forte. Quantos anos! Senti lágrimas querendo transbordar, mas segurei. Mesmo assim, o olhar do taxista identificou a minha emoção, discretamente.

O muro está alto e não há nenhuma abertura para ver se sobrou alguma coisa das flores. Tomo coragem e me dirijo a um homem que passava, para saber quem mora lá. Conto das orquídeas, das rosas, dos perfumes. Com olhar malicioso, ele me responde que ali, hoje, as únicas flores são as que desabrocham com as luzes vermelhas da noite… Tudo mudou…

* Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre (RS) e radicada em Jaraguá do Sul (SC), desde outubro de 1996.


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