Eles estão estarrecidos!
* Por
Mouzar Benedito
“Estarrecido” é uma
palavra que me sugere pavor total, horror dos horrores, não sei porquê. Há
algum tempo comecei a desconfiar que não é tanto assim, porque, pelas cartas de
leitores nos jornais, e também por artigos publicados neles e em revistas, tem
gente “estarrecida” a toda hora e por qualquer motivo nem tão estarrecedor
assim.
O preço do tomate, o
ônibus que demora demais para passar, um problema no metrô, o trânsito
engarrafado, uma charge do jornal, uma crônica de um colunista… Por isso e
muito mais ou muito menos, as pessoas se declaram “estarrecidas” hoje em dia.
Com a corrupção, então, nem se fala.
Bem, nesse ponto,
concordo com os “estarrecidos” em geral, menos com o fato de parte deles ter um
estarrecimento seletivo, conforme o partido político do corrupto.
Algo interessante
aconteceu no metrô que peguei no bairro do Paraíso em direção à Vila Madalena,
em São Paulo, no começo de dezembro. Ocupei um banco para velhos, desfrutando
uma das poucas vantagens dessa coisa de DNA (data de nascimento antiga).
Na estação Consolação,
desceu quase todo mundo e entraram algumas pessoas. Entre estas uma moça e um
rapaz que ocuparam um banco ao lado do meu. Estava lendo um livro, mas não pude
deixar de ouvir a conversa deles. Pelo jeito, eram irmãos. E falavam da maldita
corrupção. Daí surgiu a palavra também maldita, “estarrecido”. O rapaz disse
que até um tio deles, de não sei onde, estava “estarrecido” com a corrupção e
achava que cadeia era pouco para os corruptos. Queria pena de morte, depois de
um julgamento sumário. Aí a moça, com voz firme, falou: “Se fossem condenar à
morte todos os corruptos, um dos condenados seria o próprio tio. Bandido! Pensa
que a gente não sabe que ficou rico fazendo contrabando e traficando drogas”.
Moça coerente, pensei.
Que a pena seja a mesma para todos os bandidões. Ela pensa bem diferente de um
bando de ricos que fizeram fortuna roubando, traficando e matando, ou de
herdeiros de gente que fez isso.
Um dia, há uns três
anos, num bar, fui apresentado a um sujeito quase da minha idade que estava
indignado porque os sem-terra ameaçavam ocupar a fazenda do pai dele, no Pontal
do Paranapanema.
“Naquela região, quase
tudo quanto é fazenda foi grilada… Teve caso de gente que arrumou escritura em
cartórios de corruptos, matou os índios que estavam lá dentro e agora é
fazendeiro que se diz honesto… Não estou dizendo que este seja o caso da
fazenda do seu pai”, falei. A reação dele me pareceu que era o caso, sim. Ficou
irritado, dizendo que “se for pensar nos crimes do passado” não se salva
ninguém. O que foi feito antes tem que ser esquecido.
São comuns casos
assim. Matança de índios e posseiros para se apossar de terras deles
constituíram o método para tornar certas famílias ricas e “respeitáveis”. Gente
que depois se sente no direito de ficar “estarrecida” com a corrupção alheia.
Herdeiros de
latifúndios ou fortunas urbanas originadas de maneiras estranhas não incluem
entre as personalidades que lhe causam estarrecimento os próprios pais.
Não coloco no mesmo
saco grandes ladrões e gente que comete uns pequenos ilícitos, mas fico muito
irritado quando alguns desses se fingem de puros, impolutos, imaculados, e
fazem pose de “estarrecidos”.
Por exemplo: numa lan
house que frequento, enquanto mandava mensagens pela internet, incluindo um
arquivo que estava num pendrive, ouvi um sujeito que ocupava o computador ao
lado, conversando pelo skipe, que se dizia estarrecido com a impunidade dos
corruptos.
Saí, andei uns dez
minutos e notei que havia esquecido o pendrive conectado no computador. Voltei
lá e o pendrive já não estava mais nele…
Uma moça me contou que
notou que logo que saí o “estarrecido” mexeu no computador que eu havia ocupado
e saiu rapidamente. E concluímos: roubou meu pendrive.
O estarrecido contra a
impunidade dos corruptos, rapaz com roupas de classe média e usando um
vocabulário de gente que poderia se autoclassificar como bem formada, não achou
que é corrupção roubar um pendrive, que custou pouco mas é instrumento de
trabalho alheio.
Aliás, já soube de
gente que vai a festas em casa de amigos e sai dela com discos, livros,
garrafas de bebidas e mesmo objetos de valor… Gente que rouba quem o recebe em
casa e acha “normal”, não se “estarrece” com isso.
Fiquei me lembrando de
um monte de gente que nunca se “estarreceu” com suas próprias ações corruptas,
mas certamente estariam “estarrecidas” agora com as corrupções alheias. E voei
no tempo. Primeiro para quando era criança e trabalhava como engraxate na
barbearia do meu pai. Era no tempo em que se construía Brasília. Diziam que
havia muita corrupção na execução daquela obra considerada faraônica. E havia
mesmo, inclusive por parte de gente que se vangloriava disso.
Minha terra é perto de
Itaú de Minas, onde se produz cimento. Já era uma grande produtora na época, e
caminhoneiros das cidades vizinhas, inclusive de Nova Resende, foram
contratados para levar cimento para as obras de Brasília. Ouvi de alguns deles,
na barbearia, muita contação de vantagem sobre a grana que estavam ganhando com
mutretas. É um coisa de um passado distante, mas que me grudou na memória.
Um deles foi bem
didático. Contou que para cada carga de cimento que transportava para Brasília
levava duas notas fiscais. Na entrada da área havia uma espécie de portal, onde
funcionários da Novacap, empresa responsável pelas obras, conferia a carga de
cimento, carimbava a nota fiscal, ficava com uma via e devolvia a outra via ao
caminhoneiro, que levava de volta para a empresa. Nesse portal, recebia
instruções sobre o local que devia descarregar o cimento. Mas, em vez de
descarregar, ele dava uma volta por uma estradinha secundária e no dia seguinte
passava com a mesma carga de cimento pelo portal, num horário diferente do dia
anterior, para não coincidir de dar de cara com o mesmo funcionário que
conferia, carimbava a nota etc. etc., e aí sim, ele descarregava e voltava para
Itaú. A empresa recebia duas vezes pela mesma carga de cimento (não sei se era
uma “política da empresa” ou mutreta de algum dirigente) e ele recebia uma boa
comissão.
Aí, minha lembrança
andou um pouco pra frente, para os meus 16 anos, quando já morava em São Paulo.
Trabalhava num supermercado e lá havia um sujeito muito legal, simpático, amigo
do meu irmão mais velho, que se tornou meu amigo também. Digamos que ele se
chamava Zé.
Alguns meses depois
que eu trabalhava lá, ele pediu demissão e foi trabalhar numa loja de
departamentos, a Sears. Essa loja tinha também um departamento para manutenção
dos eletrodomésticos que vendia. Passado o prazo de garantia, pagava-se pelos
consertos. O Zé tinha como função fazer orçamentos para os clientes atendidos
fora do prazo de garantia.
O cliente telefonava
ou ia à Sears pedir orçamento, o Zé ia até a casa dele, via o problema da
geladeira, enceradeira, máquina de lavar ou qualquer outra coisa, e fazia
orçamento. Se o cliente concordasse com o valor, um técnico ia lá e consertava
na própria casa dele.
Um tempo depois,
talvez uns três anos, reencontrei o Zé. Estava “bem de vida”. Contou o que fez
para ganhar mais. O melhor técnico da oficina da Sears pediu demissão e abriu
uma oficina própria, para consertos de eletrodomésticos. E o Zé era uma espécie
de sócio-fantasma dele. A partir daí, na hora de fazer orçamentos,
principalmente de alguns trabalhos mais caros, exagerava nos preços. O cliente
reclamava, dizia que era muito caro e ele, pedindo segredo, dizia que conhecia
um técnico excelente que faria o trabalho por um preço muito menor. E dava o
número do telefone do sócio. O custo era realmente muito mais barato, e o
cliente optava por ele.
Mais um tempo depois,
o meu irmão me contou, não “estarrecido” mas um tanto assustado, que havia
encontrado o Zé. Como havia me contado com a maior tranquilidade sobre o que
fazia na Sears, contou então que tinha comprado, com seu sócio da oficina, um
posto de gasolina na via Anhanguera. Tornou-se o posto preferido por muitos
motoristas de caminhão-tanque, que transportavam gasolina.
Havia um motivo para
isso: o Zé e seu sócio tinham descoberto como retirar um pouco de gasolina sem
romper o lacre da tampa do tanque. Combinaram com os caminhoneiros: eles
ganhariam um almoço ou jantar de graça, com direito a uma cerveja, em troca de
deixar que retirassem um pouco de gasolina de sua carga. Os caminhoneiros
topavam, confiando que a falta de algumas dezenas de litros de gasolina de sua
carga não seria vista como um roubo pelo comprador e pelo vendedor do
combustível, pois o lacre não havia sido rompido. E o Zé foi ficando rico.
A última notícia que
tive do Zé, na década de 1970, uns catorze ou quinze anos depois que eu o
conheci, era que ele tinha uma imobiliária em São Paulo. O cara que me contou
disse que desconfiava que os loteamentos que fazia na periferia incluíam alguns
terrenos grilados.
Se já tiver se mandado
desta para uma melhor, deve ter deixado herdeiros muito “bem de vida”, não?
Possivelmente, algum deles “estarrecido” com a corrupção dos políticos.
Como disse, muitas
famílias “respeitáveis” de hoje fizeram fortuna com métodos parecidos ou
piores. Sobre isso, recomendo o livro Coronéis e Carcamanos, de Júlio
Chiavenatto, ambientado em Ribeirão Preto das grandes fazendas de café do
início do século passado.
“Ah… Só ele que nunca
fez mutreta”, deve ter alguém pensando e ironizando. Nada disso. Não sou
impoluto, imaculado… E acho uma chatice gente puritana demais. O que não
significa conformismo ante escândalos de corrupção.
Só que todos (ou quase
todos) fizemos pequenas safadezas. Lembro-me de que, quando criança, roubava
frutas. Sabia de cor, assim como outros moleques, os quintais que tinham
mangueiras, pessegueiros, laranjeiras… Já jovem, às vezes participava de um
grupo que de vez em quando roubava frangos para cozinhar num boteco, com arroz
e “cear” de madrugada.
Numa época em que
precisava de uma coisa chamada “antecedentes políticos e sociais”, emitido pelo
Dops, que as empresas e o próprio governo exigia para nos dar emprego, comprei
duas vezes esse papel, mais conhecido como “atestado ideológico”. E tem mais:
num tempo de dureza, cheguei a fazer uma coisa chamada “dar pinote”. Muita
gente fazia, o que não me absolve. Sem dinheiro e muito a fim de tomar umas,
fui algumas vezes a bares caros, bebi e saí correndo sem pagar a conta. Só tive
a consciência de escolher bares careiros, de gente rica.
Se acho normal isso?
Mais ou menos. Repito: não significa concordar com a corrupção, principalmente
envolvendo dinheiro público, mas também com a corrupção privada. E tem o volume
de grana. Há diferenças, claro. Tem aquilo de quantos hospitais, quantas
escolas etc. poderiam ter sido construídos com o dinheiro que vai para o ralo
por causa da corrupção. Se o dinheiro for utilizado para essas coisas, né?
Então, pau nos corruptos. Em todos, sejam políticos de qualquer partido,
empresários, banqueiros o que for.
Sempre houve uma
posição dura de órgãos governamentais federais, estaduais e municipais, quando
o “sonegador” não tem advogados especializados e contadores para defendê-lo, ou
seja, quando ele é pobre. Quem sabe, agora eles se dediquem a “perseguir”
grandes sonegadores e deixe em paz (ou pelo menos não persiga) bagrinhos, que
às vezes por erro ou esquecimento “sonegam” alguns reais de imposto.
Ora, comecei a falar
de “estarrecidos” por motivos nem tanto “estarrecíveis” e vim parar? Viajei…
*
Jornalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário