Pelas
mãos habilidosas dos grandes escritores
* Por
Marta Barcellos
Esqueça as baixarias
escritas nas portas de nossos banheiros públicos e imagine-se na Universidade
de Harvard. Foi em um deles que surgiu o grafite: "Deus morreu. Assinado:
Nietzsche". Alguns dias depois, alguém atestou embaixo: "Nietzsche
morreu. Assinado: Deus".
Com essa história
gaiata, o escritor e diretor da biblioteca de Harvard, Robert Darnton, iniciou
sua resposta à inevitável pergunta sobre a morte do livro, que abriu o segundo
debate sobre o tema na Festa Literária de Paraty (Flip) de 2010. "Com a
morte decretada tantas vezes, certamente o livro vai continuar vivo",
concluiu, para seguir adiante em questões mais prementes para a indústria do
livro, como a dos direitos autorais e o poder do Google na era digital.
Não, o livro não vai
acabar; sim, a digitalização já é uma realidade, concordaram Darnton e John
Makinson, CEO do Penguim Group, na ocasião. Era a minha primeira Flip, eu
estava mais interessada nos debates com escritores de ficção, e andava saturada
da guerra travada entre adoradores-do-cheiro-e-da-textura-do-papel versus
adoradores-de-toda-e-qualquer-nova-tecnologia. Mesmo assim, acabei despertada
para alguns aspectos que, até então, me pareciam pouco explorados apesar (ou
por causa) do excesso de ruídos.
O primeiro é o impacto
que o livro digital causará (e provavelmente já está causando) na experiência de
leitura. Tudo leva a crer que o leitor do futuro acabará abrindo mão da
experiência "ponta a ponta" de um livro, e do tipo de aprendizado que
ela proporciona, em prol de uma outra dinâmica de assimilação de conteúdos
escritos na qual pontos de interesse prévios são facilmente localizados.
Isso já acontece hoje
com as notícias na internet, onde o leitor pode atualizar-se apenas sobre
"o mundo que lhe interessa", não mais conduzido por um editor de
jornal que hierarquizava o mundo para ele. Da mesma forma, o leitor de livros
não caminharia mais pelas mãos do escritor, do início ao fim do livro.
Assim como convivem,
em Harvard, os que acham que Deus matou Nietzsche e os que defendem que foi
Nietzsche quem matou Deus, haverá quem julgue superior uma ou outra experiência
de leitura. No caso do noticiário, o fim da hierarquização por editores que
detinham o monopólio da informação foi festejada: acabou a manipulação. Mas
também a possibilidade de ser convencido sobre a relevância de um assunto novo
ou de ter uma visão de mundo mais global, menos segmentada.
O efeito colateral da
nova dinâmica de disseminação da informação seria o surgimento de internautas
que se supõem bem informados apesar de viverem "em microguetos, sem
contato com gente que pense diferente", como citou recentemente o
antropólogo Hermano Vianna, a propósito do livro A era do radicalismo, de Cass
Sunstein.
Com a facilidade do
livro digital, posso comprar (baratinho?) neste instante o livro de Sunstein e
buscar, no meu e-reader ou tablet, a parte citada por Vianna que me instigou em
sua coluna. Lerei o livro como quem navega na internet, buscando o que acho que
já sei, e que por isso me interessa. Terei contato com uma obra que
dificilmente conheceria de outra forma, mas dispensarei a mão que o escritor
americano oferece a seus leitores nas primeiras páginas, tentando conduzi-lo
por algum raciocínio que somente a experiência ponta a ponta de leitura tornará
possível compreender em toda a sua dimensão.
Lerei a mim mesma,
partindo da minha festejada liberdade, como já faço com as notícias. Busco um
espelho, que delineie os contornos das minhas convicções. É para essa
experiência individualizada que serve o "personal" computer, não é
mesmo?
Se o livro tiver
características de uma obra de consulta, estarei economizando meu tempo, graças
a esta nova forma de leitura. A dúvida, em relação ao leitor do futuro, é se
esse novo hábito não o afastaria definitivamente da experiência proporcionada
por um romance social de 600 páginas que, além de concentração e esforço, exige
uma postura de abandono nas mãos do autor. O leitor precisa sair do comando,
esquecer o "buscador" que transforma o mundo na "sua cara",
para se lançar, sem interesses ou ideias prévias, no mundo que o escritor irá
lhe descortinar. Um tipo de interatividade única com o mundo das ideias, mas
que irá afastá-lo da outra interatividade, mais óbvia, piscando em seu celular.
Suponhamos que a minha
preocupação, no entanto, parta de um preconceito em relação à dispersão dos
novos leitores, e que a mente multitarefa consiga, sim, concentrar-se em Anna
Karenina e usufruir de uma obra que transpõe os séculos. Despidos de
preconceitos e convencidos da realidade digital, precisamos agora saber como
conservar uma obra de Tolstói em nossas bibliotecas virtuais. A questão da
perenidade dos livros, entretanto, foi outra que ficou sem resposta no debate
da Flip. Com hardwares e softwares se tornando obsoletos tão rapidamente,
parece inevitável conviver com o temor de perder obras que julgamos eternas.
Darnton mencionou um pesadelo recorrente: o de acordar um dia e descobrir que
todos os textos digitais desapareceram da face da terra. Makinson tentou
tranquilizá-lo: certamente alguém já teria impresso aquele texto em alguma
parte do mundo.
E assim voltamos a
falar da segurança do papel... Como os visitantes da Flip não são
colecionadores de papel nem de gadgets, o debate sobre o futuro do livro
subitamente me parece tolo. Nas ruas de Paraty, uma multidão enfrenta e
desfruta do solo e do clima instáveis para ter acesso ao que realmente lhe
interessa: as ideias por trás dos livros. Observo o fascínio dos leitores pelo
processo criativo dos escritores, como se quisessem desvendar o truque do mágico,
descobrir o fundo falso da cartola. E escolho acreditar que novos leitores vão
continuar, sim, se deixando conduzir pelas mãos habilidosas dos grandes
escritores.
Assim como Robert
Darnton, que usou o truque da piada sobre o banheiro de Harvard para iniciar
sua exposição, os visitantes da Flip ? em toda a sua diversidade ? sabem que
sempre haverá histórias para serem contadas, e gente interessada nelas. Pelo
menos, nas boas e bem contadas.
Extraído do Digestivo
Cultural e publicado com autorização da autora
*
Jornalista, trabalhou nos veículos “O Globo”, “Gazeta Mercantil” e “Valor
Econômico”, e hoje consegue conciliar realização no trabalho com qualidade de
vida. Já escreveu três livros jornalísticos, encomendados por empresas. Presta
serviços de conteúdo por meio da Contexto Final, é colaboradora do Valor
Econômico e mantém colunas fixas na revista Capital Aberto e no site Digestivo
Cultural, além de manter seu blog "Espuminha de Leite" http://blog.contextofinal.com.br/perfil/
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