sábado, 5 de dezembro de 2015

O avião de Zico


* Por Ione Jaeger


Lembro-me como se fosse hoje o primeiro dia que vi o Zico. Estava ele a meio corpo escondido atrás de sua mãe, dona Dite, que tratava com minha mãe um serviço de lavagem de roupa. Era um garoto negrinho de olhos expressivos, cílios longos, olhos semi-cerrados, mostrando a timidez de estar seu dono frente a pessoas estranhas. Trajava uma calça bastante gasta de tecido claro e camisa listrada vermelho e preta.

Enquanto eu tentava fazer funcionar um antiga vitrola de manivela, o menino observava com curiosidade evitando que os nossos olhos se encontrassem. Não conseguindo descobrir o defeito do velho aparelho, passei a conversar com a criança.

– Como é seu nome?

– Zico! Disse baixinho.

– Zico é apelido. Qual é o seu nome verdadeiro?

– Francisco. Outro sussurro.

– Ah! Francisco. Quantos anos você tem, Zico?

Mostrou seis dedinhos afilados na mão espalmada de pele roxa, lisinha e brilhosa, com um bem riscado M.

– Seis anos? Recebi por reposta um balanço afirmativo com a cabeça.

Fiz outras perguntas. Tive respostas monossilábicas ou nenhuma. Desta maneira transcorreu o nosso primeiro encontro.

Todas as segundas e sextas-feiras voltava à minha casa, acompanhando a mãe, no leva-e-traz da roupa. A roupa de goma, uma trouxa pequena, o Zico trazia. Carregava-a nos dois bracinhos num porte de grande responsabilidade.

Com o tempo fiquei sabendo que o Zico era filho de criação. Ajudava dona Dite no transporte da roupa, fazia compras, cuidava da comida no fogo enquanto a mãe permanecia na fonte a uns quinhentos metros longe da casa. Era um ajudante exemplar! Filho único de mãe solteira, tinha uma educação não encontrada em muita gente boa.

               Nas idas à minha casa eu conversava bastante com o garoto. Foi se chegando a mim. Respondia às minhas inúmeras perguntas de mocinha curiosa. Contava algumas brincadeiras, travessuras, quando estávamos sozinhos. Gostava bastante do menino e sentia que ele, também, gostava de mim.

Segunda-feira pela manhã eu estava numa das extremidades da enorme varanda estudando álgebra. Num pequeno quadro-negro, calculava um teorema. Precisava tirar um nota alta nesse último mês para suavizar a tensão das provas finais. Percebi que o Zico se aproximava. Parou, olhou o que eu fazia:

– Qui é ito qui a seola tá fazeno?

Estudando. Quero ser professora! E você, Zico, o que pretende ser quando ficar grande?

Os olhinhos sorriram antes de falar e segredou-me no ouvido:

– Sê guiador de avião!

– Aviador, é que se diz, corrigi.

Naquele dia o menino soltou, completamente, a língua. Falou tudo que sabia sobre aviões. Muita coisa não entendi. Falava ligeiro e era “tatibitate”.

Mais tarde fiquei sabendo a razão do grande interesse por aviões. Perto de onde morava havia um aeroclube. Zico conhecia alguns rapazes da escola de “brevê”.

Dona Dite contou-me o grande desejo do menino – ganhar de Papai Noel um avião de brinquedo, igual ao que vira na casa de seu Ramos, uma família para quem lavava roupas. O avião era do Luizinho, o filho do casal. Zico ficou encantado. Era de corda. Movia as hélices. A mãe do Zico impostando a voz:

– Custou seiscentos mil reis! O pior é que ele acha que o Papai Noel vai trazer, de verdade! Não sei o que fazer...

Ouvindo isso tomei uma decisão. Faltavam duas semanas para o Natal. Pedi a todos: meus pais, meus tios, minha irmã, minha prima – o noivo desta, até nossa empregada, dona Rosa, contribuiu com “um mil reis”. Completei o valor com a minha mesada e comprei o avião que “movia as hélices”.

Na manhã do dia vinte e quatro de dezembro fui à casa de dona Dite levar o presente disfarçadamente embrulhado. A casa era pequena, muito limpa. Pintura externa rosa-claro, desbotada, fachada de porta e janela. Meu amigo não estava. Saíra para comprar cigarro a pedido de um dos moços do campo de aviação.

Voltando da compra encontrou-me e disse que o cigarro era para o Ataíde, um jovem que prometera levá-lo num passeio de teco-teco, logo que obtivesse o brevê. Falava fascinado.

Saí de lá contente imaginando a carinha do Zico quando nos encontrássemos após o Natal. Ele, todo feliz, contando sobre o presente. À noite, cheguei a sonhar com o avião do Zico.

No dia vinte e cinco, ao pegar o primeiro jornal da manhã, li a notícia,  em  grande manchete:

“Acidente com teco-teco”

“Um avião teco-teco, às dezesseis horas, desgovernou-se ao tentar levantar vôo, saindo dos limites da pista, indo de encontro a uma das casas das proximidades, matando apenas um dos ocupantes. Um menino de seis anos. Instrutor e aluno saíram ilesos.”

... e foi na casa rosa de porta e janela! ...



* Poetisa e escritora


Nenhum comentário:

Postar um comentário