sábado, 10 de outubro de 2015

O sagrado mora nas alegrias


* Por Eduardo Murta


Três ruas, quatro ruelas e aquele calor de amolecer os ossos fariam da Vila do Funil um lugarejo como tantos por lá. Fariam, mas não fizeram. Mirem, numa ponta, as meninas-moças perfumadas rumando ao janelão que fica ao centro da Rua Esquerda. Os sapatos baixos assinando os passos ao calçamento em pés-de-moleque. Vão dar com a casa em que o número 83, em cerâmica portuguesa, é revelador da delicadeza que se abriga por ali.

Noutro extremo, notem, se alinham as mulheres em que a circunspeção grave, as roupas em tons fechados, sugerem um encontro menos alegórico. Vão rumar ao sobradão, oito sacadas, a pérola arquitetônica da Rua Direita. As velas já prontas para arder no curso da noite, emprestar luz àquele rosário de crenças. Eis que os dois rituais, se convertendo históricos, haveriam de partir o lugar ao meio. E sem fazer rolar uma só gota de sangue.

O divisor de águas era a forma de ver o mundo. No casarão da Rua Esquerda, o astro era a radiolinha à pilha de Dona Fonsa, vermelha, embalando as danças. No da Direita, as bandeiras para louvação divina, passadas de geração em geração na família de Sá Clotilde. Daí, os que se refugiavam na Rua do Meio faziam suas escolhas ao chamado: abrir o coração à alegria fresca dos cancioneiros que imitavam mariposas ou repousar ali o veludo dos cânticos de fé, sublimes, vindos da outra margem.

Era assim que a comunidade do Funil cruzava o entardecer de suas quartas-feiras. Com os sentimentos partidos. Mas assentados num código de honra de pronto estabelecido pelas matriarcas. As diferenças se fariam claras, mas acender incensos à intolerância era gesto proibido. O bom dia ainda era saudação sincera nas bancas de feira e todos – ou todas, porque eram confrarias femininas – seriam bem-vindos aos sermões santos nas manhãs de domingo, no Largo da Pracinha.

E mesmo que poucas (sabia-se o nome de cada uma e em que cartilha rezavam), as mulheres do lugar exibiam os símbolos da divisão. As de Dona Fonsa com camélias brancas emplumando os cabelos, vestidos mais contentes. As de Sá Clotilde, vestidos mais contidos, os cravos vermelhos perfumando os penteados. Desfilavam garbosas. E, canto de olho, vigiavam com que grau de devoção as bocas distintas iam respondendo às equações da liturgia.

Tomavam caminhos distintos na partida. Um grupo marchava com a filarmônica de Zé Linguado em ritmo sacro, solene. Outro, embarcava com a retreta de João Pio desdobrando ritmos ruela afora. O sol trespassando sombrinhas e o mar de suor empapando os corpos. Iriam se refrescar cada um a seu modo. As meninas de Dona Fonsa na guerra d`água – as bacias largas já alinhadas ao passeio. As de Sá Clotilde no movimento apressado dos leques.

O grave se deu na semana seguinte. O mexerico em forma de segredo venenoso: um dos lados planejava invadir, ocupar e consumir em fogo o casarão rival. Destruir símbolos de rigor ortodoxo ou de malemolência pagã. Foram madrugadas e madrugadas de vigília, num cenário que lembrava duelos no poeirão da velha Mutum. Emissária em bandeira branca para um ponto, enviada para conversações cruzando a noite insone noutra direção.

E eis que, nas luzes inaugurando aquela Quarta de Cinzas, lá estavam as matriarcas e seus séquitos. Dos extremos da Rua do Meio, as tochas em brasa denunciavam o ardor de cada credo. Em passos lentos, foram devorando as distâncias. Tom de batalha. Os saltos à calçada em pés-de-moleque revelando o rumor da proximidade. Poucos segundos, e as líderes se encontrarão no limite dos terrenos, a mercearia de Lili.

Enxergarão o suor tracejando a face alheia, o hálito de ansiedade secando o paladar. Trocarão olhares fundos, impressões. Uma, duas palavras. Um diálogo, por fim. Os cheiros presentes como nunca, tensionados, porque os impuros estavam condenados a arder. O movimento conjunto dos braços, e veio o primeiro som: um cântico. Em seguida, sem se sobrepor àquelas vozes, uma marchinha de Carnaval. E os bastões em fogo se distanciando, numa cumplicidade velada. Divina. Porque o sagrado, agora sabiam, não estava na guilhotina das diferenças. Sagrado era a alegria.


* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. Foi um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

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