José de Alencar
* Por
Araripe Junior
A pátria de tal
artista é uma espécie de Arábia encantada, aonde a vara mágica do gênio concede
a tudo tintas de felicidade. Esta é a terra do amor. Mas que amor! um amor
edênico e ao mesmo tempo caprichoso, como só o oriente sabe produzir. O amor
que ele aspira é um “desses amores poéticos, inocentes, que têm o céu por
dossel, as lianas verdes por cortinas, a relva do campo por divã, e que a
natureza consagra como mãe extremosa”. Não é de admirar, pois, que a mulher,
atravessando esses sonhos, não se apresente senão como uma nimiedade gentil,
cercada de canduras e tiques infantis, e que todas as suas concepções propendam
para o que a natureza contém de mais tênue, perfeito e delicado “no frouxo
roçar das árvores, nos murmurejos das ondas, nos cicios da brisa, nas folhas de
rosa da harmonia”. Os tipos que mais lhe entram no coração são Eva, de Milton,
Haideia, de Byron, Atala, de Chateaubriand, Cora, de Cooper. Tudo, naquelas
cartas, está denunciando que o grácil, para José de Alencar, tinha se
constituído a fórmula da poesia.
E como não assim, se,
no estádio de sua vida a que aludo, graças às disposições de seu espírito, ele
não podia enxergar senão o vivaz, o interessante, a gentileza!? Os escritos,
portanto, referentes a todo o período que foi regido por esse movimento
expansivo, ressentem-se deste traço característico, - da luz diáfana, do
encantamento caprichoso, grácil e sorridente, que se difundia por sua alma de artista.
Veremos, mais tarde, todos estes elementos condensarem-se em verdadeiras obras.
O que é certo, e se
torna bem patente pelas cartas aludidas, é que não houve autores que
concorressem tão poderosamente para a formação de estro de José de Alencar como
os poetas, os escritores de veia oriental, nomeadamente Victor Hugo, e os
confidentes do coração, Chateaubriand, Lamartine e Bernardin de Saint-Pierre;
os primeiros, como coloristas, os dois seguintes, calcando-lhe profundamente o
sentimento da paisagem, e o último, infundindo-lhe no ânimo as gotas mais
dulçorosas da vida e do amor. De semelhante fusão nasceu o traço já indicado, e
a poesia se lhe afirma por toda parte como a ternura da natureza revelada pelo
som, pela cor, pela forma, pela luz, pela sombra e pelo perfume. É insuflado
por este sentimento que José de Alencar volve-se para o seu belo Brasil, ‘filho
do sol, cheio do seu brilho e luxo oriental’, e, tendo-o estudado através das
velhas crônicas de Simão de Vasconcelos, Lery, Gabriel Soares, Rocha Pita e
outros, projeta a miragem que ocupava seu espírito sobre a realidade, para
convertê-la num éden, onde sua fantasia viverá como em um país conquistado.
“A flor da parasita, o
eco profundo das montanhas, a réstia de sol, a folha, o inseto falarão com
eloquência a seus sentidos”, e induzi-lo-ão a crer, com os aborígenes, em uma
terra toda iluminada pela teogonia que Thevet depurou de entre superstições
esparsas. Com os nheengaraçaras tupis, ele enxergará o beija-flor, o guainumbi,
conduzindo as almas dos selvagens para além das montanhas azuis, e encontrará
por toda parte “esta flor celeste que iria-se de lindas cores aos rigores do
sol”, adejando como gênio benéfico que se incumbe de suprimir, aos olhos do
poeta, as torpezas das regiões tropicais.
Rios esplêndidos
deslizarão através de florestas magníficas, cascatas soberbas cintilarão
despenhando-se do alcantil das montanhas, lagos, através dos quais singrará a
canoa do índio guerreiro amoroso, se mostrarão a seus olhos ávidos de gozo; e,
no Brasil de sua imaginação, clareado pela luz mágica e elétrica, entrarão, com
ele, milhares de olhos também cobiçosos, que acreditarão viver com os seres
fantásticos do passado. E será no oásis, criado por sua fantasia, no meio de um
deserto de imaginações áridas, que o autor do Guarani fará habitar um
sem-número de entidades, que, uma vez contempladas, nunca mais se esvaecerão da
memória.
Outras leituras podiam
ter concorrido para o desenvolvimento da individualidade de José de Alencar.
Sabe-se, por exemplo, que Walter Scott, Fenimore Cooper, Marryat, George Sand,
Dumas foram por ele mui assiduamente lidos; mas a influência destes escritores
foi, seguramente, secundária. Porventura constituíram-se seus mestres naquilo
que se considera, em obras de arte, o exterior, o molde, a construção; nunca,
porém, entraram na composição do espírito de quem um dia deveria escrever os
primeiros cantos da Iracema.
(José de Alencar, 1882)
*
Crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário