sábado, 10 de outubro de 2015

José de Alencar


* Por Araripe Junior


A pátria de tal artista é uma espécie de Arábia encantada, aonde a vara mágica do gênio concede a tudo tintas de felicidade. Esta é a terra do amor. Mas que amor! um amor edênico e ao mesmo tempo caprichoso, como só o oriente sabe produzir. O amor que ele aspira é um “desses amores poéticos, inocentes, que têm o céu por dossel, as lianas verdes por cortinas, a relva do campo por divã, e que a natureza consagra como mãe extremosa”. Não é de admirar, pois, que a mulher, atravessando esses sonhos, não se apresente senão como uma nimiedade gentil, cercada de canduras e tiques infantis, e que todas as suas concepções propendam para o que a natureza contém de mais tênue, perfeito e delicado “no frouxo roçar das árvores, nos murmurejos das ondas, nos cicios da brisa, nas folhas de rosa da harmonia”. Os tipos que mais lhe entram no coração são Eva, de Milton, Haideia, de Byron, Atala, de Chateaubriand, Cora, de Cooper. Tudo, naquelas cartas, está denunciando que o grácil, para José de Alencar, tinha se constituído a fórmula da poesia.

E como não assim, se, no estádio de sua vida a que aludo, graças às disposições de seu espírito, ele não podia enxergar senão o vivaz, o interessante, a gentileza!? Os escritos, portanto, referentes a todo o período que foi regido por esse movimento expansivo, ressentem-se deste traço característico, - da luz diáfana, do encantamento caprichoso, grácil e sorridente, que se difundia por sua alma de artista. Veremos, mais tarde, todos estes elementos condensarem-se em verdadeiras obras.

O que é certo, e se torna bem patente pelas cartas aludidas, é que não houve autores que concorressem tão poderosamente para a formação de estro de José de Alencar como os poetas, os escritores de veia oriental, nomeadamente Victor Hugo, e os confidentes do coração, Chateaubriand, Lamartine e Bernardin de Saint-Pierre; os primeiros, como coloristas, os dois seguintes, calcando-lhe profundamente o sentimento da paisagem, e o último, infundindo-lhe no ânimo as gotas mais dulçorosas da vida e do amor. De semelhante fusão nasceu o traço já indicado, e a poesia se lhe afirma por toda parte como a ternura da natureza revelada pelo som, pela cor, pela forma, pela luz, pela sombra e pelo perfume. É insuflado por este sentimento que José de Alencar volve-se para o seu belo Brasil, ‘filho do sol, cheio do seu brilho e luxo oriental’, e, tendo-o estudado através das velhas crônicas de Simão de Vasconcelos, Lery, Gabriel Soares, Rocha Pita e outros, projeta a miragem que ocupava seu espírito sobre a realidade, para convertê-la num éden, onde sua fantasia viverá como em um país conquistado.

“A flor da parasita, o eco profundo das montanhas, a réstia de sol, a folha, o inseto falarão com eloquência a seus sentidos”, e induzi-lo-ão a crer, com os aborígenes, em uma terra toda iluminada pela teogonia que Thevet depurou de entre superstições esparsas. Com os nheengaraçaras tupis, ele enxergará o beija-flor, o guainumbi, conduzindo as almas dos selvagens para além das montanhas azuis, e encontrará por toda parte “esta flor celeste que iria-se de lindas cores aos rigores do sol”, adejando como gênio benéfico que se incumbe de suprimir, aos olhos do poeta, as torpezas das regiões tropicais.
Rios esplêndidos deslizarão através de florestas magníficas, cascatas soberbas cintilarão despenhando-se do alcantil das montanhas, lagos, através dos quais singrará a canoa do índio guerreiro amoroso, se mostrarão a seus olhos ávidos de gozo; e, no Brasil de sua imaginação, clareado pela luz mágica e elétrica, entrarão, com ele, milhares de olhos também cobiçosos, que acreditarão viver com os seres fantásticos do passado. E será no oásis, criado por sua fantasia, no meio de um deserto de imaginações áridas, que o autor do Guarani fará habitar um sem-número de entidades, que, uma vez contempladas, nunca mais se esvaecerão da memória.

Outras leituras podiam ter concorrido para o desenvolvimento da individualidade de José de Alencar. Sabe-se, por exemplo, que Walter Scott, Fenimore Cooper, Marryat, George Sand, Dumas foram por ele mui assiduamente lidos; mas a influência destes escritores foi, seguramente, secundária. Porventura constituíram-se seus mestres naquilo que se considera, em obras de arte, o exterior, o molde, a construção; nunca, porém, entraram na composição do espírito de quem um dia deveria escrever os primeiros cantos da Iracema.

(José de Alencar, 1882)

* Crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras.


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