segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Caixa de patifarias


* Por Rui Alberto Paneiro



Em maldita hora meu pai abriu para mim uma caderneta na Caixa Econômica Federal.

Isso aconteceu em 1941, quando nasci. Durante pelo menos dez anos, no dia de meu aniversário, ele depositava um conto de réis (ou mil cruzeiros). Não sei equiparar com o dinheiro de hoje, mas era uma boa grana.

Muitas vezes, quando a generosidade sumia lá de casa, pensei em retirar alguns cobres. Primeiro, para comprar gibis, balas e doces. Com o tempo, ambições ampliadas, o saque seria para coisas mais caras. Como a bicicleta, por exemplo. Que, por sinal, acabou vindo de meu avô materno. De presente. Uma Phillips inglesa, aro 26, ainda rodando pelas ruas de Paquetá. Tinha eu dez anos.

Dos 12 aos 18, várias vezes a idéia de pegar algum dinheiro na Caixa me voltou à cabeça. Mas nem adiantava tentar, porque os depósitos só poderiam ser mexidos quando o beneficiário, eu, no caso, completasse 21 anos. Nessa fase, a salvaguarda até foi benéfica, já que eu andava perdidamente apaixonado por sinuca, corrida de cavalos, pôquer, sete e meio, ronda e que tais. Até em placa de carro eu apostava.

Era época de Dexamil, Estenamina, Pervitin e outras bolinhas. Todo mundo ligadão. Perto do carnaval, lança-perfume. O resto do tempo, samba em Berlim, Cuba Libre, Hi-Fi, gim tônica. Whisky, raramente. Maconha, coca, cheirinho da loló e picos não eram de bom tom. Coisa de gentalha. Seguidor de James Dean não entrava nessa.

Já aos 18, a onda era ser rebelde, de preferência sem causa. Quase obrigatório partir de moto para a estrada. Muito curta, a vida. O negócio era viver intensamente, sem amarras e fronteiras. Nada de se prender a um lugar por uma situação financeira boa e estável. O mundo estava lá fora, com experiências que cresciam na medida da movimentação.

Tinha de se ler Sartre.

Henri Lefèvre apontava as idéias de Jean-Paul Sartre como a “metafísica da merda” e para Jacques Maritain elas eram a “mística do inferno”. O papa Pio XII, na encíclica voltada às correntes filosóficas modernas, destacava o existencialismo como a doutrina mais ameaçadora dos fundamentos da fé cristã. E, no Brasil, o papa-hóstia Tristão de Athayde pontificava: “Satre, sem dúvida, é detestável”.

Era o bastante para curtir Sartre, mesmo sem entender direito As Palavras e As Idéias. Nada demais, então, misturar Jean-Paul com Jean-Jacques Rousseau e algumas pitadas de Jack Kerouac, Eric Fromm, Spinoza, Grotius. Ah, o Direito Natural, que máximo!

O mestre Paulino Jacques filosofava na Faculdade de Direito da UEG, no Catete: “A justiça é uma verdade políédrica”.

Dias terríveis de confusão intelectual. Fossa. Mas tudo bem: o dinheiro estava lá. Na Caixa. Em segurança. Rendendo.

Pois sim.

Quando fiz 21, trabalhava numa multinacional e ganhava o suficiente. Tempo de Cine Payssandu, Antonioni, Fellini, Monicelli, Pasolini, Visconti, Truffaut, Resnais, Godard, Malle, Chabrol, Petri, Cayatte, Bergman, Welles. Kurosawa, Polanski, Wajda, Eisenstein, Kalatosov. A turma da pesada.

Esqueci da caderneta.

Já como foca do Jornal do Brasil, em 68 ou 69, o salário humilhava. Voltei a me lembrar do dinheiro depositado. Às páginas tantas, fui mandado para entrevista com o presidente da CEF, um deputado da extinta UDN que então era da Arena e anos depois ainda seria ministro do Supremo Tribunal Federal. Cara de grão-de–bico. Mas muito educado, gentil, pinta de honesto e gente fina. Um gentleman.

Fiz meu trabalho.

Depois da entrevista, chamei o assessor dele no canto e lhe falei sobre a caderneta. O sujeito mandou verificar na hora e logo em seguida voltou à sala com o extrato na mão. Sem jeito, a sua cara estava mais amassada que balde de obra. No que o vi voltar, não gostei. Senti que vinha bomba. E veio. O assessor me informou que o dinheiro estivera parado anos, sem movimentação, e por isso tinha sido in-tei-ra-men-te consumido na manutenção da conta.

Eu enlouqueci. Surtei.

Falei para cacete. Disse mil palavrões. Se eu não estivesse ali a serviço do JB, eu acho que teria quebrado aquela porra toda. A começar pelo assessor babaca e pelo filha da puta daquele deputado-gentleman-para-as-negas-dele: “Ah, meu filho, você está nervoso. Não tem jeito. É assim mesmo”.

Cretino. Até hoje eu fico uma arara quando lembro dessa merda.

Pronto olha aí o resultado já estou puto de novo minha pressão foi para o espaço – maldita hora, pai – botava o dinheiro em ação do Banco do Brasil ou em dólar sei lá mas na Caixa que some com a grana da gente invade a conta dos outros e tudo bem? imagina quanta gente entrou pelo cano e se fodeu com a picaretagem dessa caderneta não quero nem pensar mais nisso puta que pariu cambada de safados.

Maldita hora.

* Jornalista, trabalhou no Jornal do Brasil. Atualmente, trabalha como freelancer e colabora com jornais eletrônicos, como o Montblaat.



Um comentário:

  1. Quando tinha oito anos de idade ganhei um concurso literário sobre Trânsito. Era uma caderneta de poupança. Tempos depois meu pai foi atrás do prêmio, mas ele tinha evaporado. Ilusões que voltam para nos assombrar.

    ResponderExcluir