quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Criar é preciso



* Por Pedro J. Bondaczuk



O processo de criação literária e, principalmente, o teor do que é criado, dependem muito de cada escritor. Têm a ver com sua cultura, sua vivência, sua autodisciplina, seu talento e com os ambientes que freqüentou, as pessoas que conheceu e seu grau de observação, além do óbvio: sua técnica, seu estilo, seu domínio do idioma e sua visão de vida. Por outro lado, cada gênero (poesia, crônica, ensaio, conto, novela e romance) tem seus próprios macetes, suas peculiaridades, suas regras características. O que deve prevalecer, acima de tudo, é o bom gosto. Para ter sucesso, é necessário que a obra literária tenha a capacidade natural de prender a atenção do leitor. E, mais do que isso, fazer dele um cúmplice, uma espécie de parceiro do ato criativo, o que é muito mais difícil do que parece.

O escritor deve ter um objetivo, ao produzir suas obras, que vão além do aspecto comercial, da simples venda de livros para garantir seu sustento. Aquilo que escreve precisa ter alguma utilidade: ou a de ensinar, ou a de divertir, ou a de provocar reflexão ou, quando possível, todas elas simultaneamente. De todos os gêneros, o que tem mais pessoas se aventurando nele, e no entanto é o mais difícil, o que menos rende (quando rende) e o que mais exige do autor, é a poesia. Todo adolescente normal ou já perpetrou alguns versinhos para homenagear a amada ou sentiu-se tentado a fazê-lo. E quando não fez uma coisa e nem outra, certamente copiou versos alheios com o mesmo objetivo. Nem por isso, contudo, essa pessoa é considerada poeta. Pode até ser, mas não por essa razão. E nem tudo o que copiou (quando esse foi o caso), ou produziu é poesia, embora tenha essa forma.

O gênero é perigoso e pode conduzir qualquer um à pieguice, ao lugar-comum e, em última análise, ao ridículo. Mesmo os poetas que têm domínio dessa arte correm esse risco. Ás vezes compõem obras que para o seu gosto são magistrais. E no entanto, por uma razão subjetiva, sem explicação racional e lógica, tais poemas não repercutem. Morrem à míngua de leitores. Pelo contrário, há ocasiões em que rabiscam as primeiras palavras que lhes vêm à mente em algum guardanapo de restaurante, inserem esses textos despreocupados em livros para completar um determinado número de páginas e obtêm, exatamente através deles, a consagração.

E não adianta a opinião dos críticos. Meus primeiros poemas foram considerados "retóricos e discursivos". Até hoje não sei o que esse cidadão pretendeu dizer. Mas, afinal, o que é a poesia senão um jogo hábil de palavras? Senão um bem elaborado discurso? Senão um exercício de retórica? Para expressar idéias, temos o ensaio. Para contar estórias, há o conto, a novela e o romance. Para estabelecer um diálogo descontraído e trivial com o leitor, recorremos à crônica. A poesia é a criação de imagens através das palavras. Por isso seus movimentos, suas escolas, seus diversos "ismos", emprestam a denominação da pintura: concretismo, dadaísmo, cubismo, etc... Há críticos que acham que só fazem bem o seu trabalho quando criticam, mesmo o que não seja criticável. Alguns sequer entendem o que estão criticando.

André Maurois observa no livro "Vozes da França": "A função do poeta é dar às palavras o seu valor harmônico e criar de novo, com o auxílio delas, associando-as, substituindo-as, surpreendendo-as em posições inéditas, o ar de mistério de que originariamente se cercavam". Eu, pessoalmente, tenho alguns macetes para determinar se um poema meu é bom ou ruim. É na base do "gosto" ou "não gosto". Uma das atitudes é guardá-lo em uma gaveta durante, digamos, três meses, antes de decidir se terá existência ou será  destruído. Se após esse período, o texto me der o mesmo prazer que deu quando o escrevi, sobrevive. Caso contrário, o rascunho é simplesmente amassado e jogado no lixo. Tenho casualmente em mãos um deles, dessa lista de espera, que intitulei "Desafios" e que foi escrito em 23 de setembro de 1995.

Por coincidência, gostei dele (embora o leitor possa detestá-lo). Para evitar que "morra", tomo a liberdade de transcrever esses versos:

"Fazer da vida sinfonia heróica.
Calar a voz irada do instinto.
Dar harmonia a ásperas dissonâncias.
Criar beleza das sucatas do tempo.

Desafios. A batalha é solitária.
Drama ensandecido de zumbis
num palco composto por miragens.
Silêncio: um anjo agoniza
em copiosa hemorragia de luz.

Figuras soturnas, sombrias
vagam, ensimesmadas e mudas,
por vielas sombrias, fétidas,
perdidas nos meandros do vício.

Multidões desorientadas, em fúria,
vociferam slogans sanguinários,
mantras homicidas de violência:
rebelião de marionetes sem cabeça.

Fornalha que consome ilusões,
reduz a cinzas esperanças,
princípios, éticas e tradições.

Fazer da vida sinfonia heróica.
Calar a voz irada do instinto.
Dar harmonia a ásperas dissonâncias.
Desafios...Tarefas de uma vida...".

Imagens, puras imagens. A poesia é isso: é a arte de pintar emoções com palavras.


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk



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