O Bogart de igarapé
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Era uma tarde de
agosto, no início da década de 60. Fazia um calor infernal. Decidi, então,
trocar uma aula de ciências do professor Afonso Nina, no Colégio Estadual do
Amazonas, por um filme que mudaria o rumo da minha vida, definiria minha
profissão e, agora, me permite estar aqui batendo um papo contigo. Não lembro
se o cinema era o Polytheama ou o Guarany. Não recordo mais o enredo nem o
título do filme, o que aliás não tem a menor importância. Só não consigo
esquecer o personagem principal – um jornalista – vivido na tela por Humphrey
Bogart.
Charmoso, refinado,
vestindo seu inseparável casaco com a gola virada pra cima, fingindo desleixo,
o jornalista Bogart viajava de Paris a Nova Iorque e daí a Pequim com a mesma
facilidade de quem vai da Praça da Saudade ao Teatro Amazonas. Hospedagem: só
em suíte de hotéis luxuosos. Comidas: sempre em restaurantes chiques com vinhos
franceses. Sala de redação: no deque de uma piscina, onde ele batucava,
intrépido, na máquina de escrever portátil e afogava-se em cascatas de uísque
escocês. Em cada cidade que chegava, papava mulheres gostosas, cheirosas e
sensuais.
- É isso que eu quero
prá mim. Vou ser jornalista - pensei,
ansioso, ao atravessar a rua, muito suado, desviando das poças de lama, em
direção à banca de tacacá da nega Vitória, onde encontrei o Inezildo Bate-Papo,
lá da Xavier de Mendonça. Lembro muito bem, porque ele me chamou de cunhado e
me pagou dois croquetes, enquanto cantarolava, com voz trêmula e anasalada, um
sucesso de Anísio Silva, tocado insistentemente nas rádios:
- Alguém me disse, que
tu andas novamente, de novo amor, nova paixão, toda contente.
A minha nova paixão
era, evidentemente, o jornalismo. A do Inezildo era, naturalmente, minha irmã:
a Teca. Ambas, naquele momento, pareciam um sonho inatingível.
Um mês depois, o sonho
- o meu, o do Inezildo não - começou a virar realidade. Foi quando vi, pela
primeira vez, em carne e osso, um jornalista de um grande centro. Não era mais
uma ilusão cinematográfica. Era de verdade. Acabava de chegar direto do Rio de
Janeiro, onde trabalhara como repórter esportivo da Asapress, o amazonense
Jefferson de Souza. Ele voltou a Manaus com o chiado do sotaque carioca, o que
fez de sua estréia na Rádio Rio-Mar, uma fechsta echspetacular do echsporte
baré, registrada inclusive pela coluna social do Nogar - Tudo vê, Tudo informa.
Vi o Jefferson, a
menos de um metro de distância, no arraial de Aparecida, que acontecia todo mês
de setembro. Como locutor, ele anunciava os telegramas no ar e os comerciais do
“Serviço de Amplificação A Voz Quermesse de Aparecida”. As meninas suspiravam
ao ouvi-lo: “Vai casar? O seu problema é móvel? Procure o Mundo dosch
Móveissch, de Antônio M. Henriquessch”. A presença dele, ali, surpreendia tanto
quanto se hoje Romário viesse morar em Manaus para jogar no São Raimundo.
Numa época em que os
playboys do bairro andavam de alpercata de arigó feita de pneu usado, vendida
no Mercadão, Jefferson de Souza, o popular Bibi, foi o primeiro amazonense a
colocar nos pés uma sandália japonesa, leve, colorida, confortável, trazida do
Rio de Janeiro. Em Manaus, era impossível encontrar a novidade, nem na
Sapataria Onça, que vendia “os melhores calçados do Brasiiiiil”, nem na Casa
Tem-Tem, que a Rádio Difusora jurava que era “a casa do pobre e do rico
também”.
O bairro todo olhava,
fascinado, magnetizado, os pés do Bibi. Com sandálias japonesas amarelas,
óculos escuros de lentes rayban, camisa volta-ao-mundo e calça de nycron foi
que o Bibi, todo pintoso, fez sua estreia no arraial de Aparecida. Numa das
barracas, tentou a sorte: comprou argolas e conseguiu acertar num maço amarelinho
de cigarro Astória, combinando com a cor da sandália. Era a suprema glória.
O Bibi não frequentava
cassinos internacionais, como o Bogart, (no máximo arriscava uma fezinha no
jogo do bicho), mas tinha lá o seu glamour. Quando se deslocava, no arraial,
parecia um paxá, com um séquito de mulheres atrás dele, entre elas as
paraibanas, as fificas fogaças, as saubinhas e até mesmo – eu confesso - minhas
próprias irmãs, todas elas querendo namorar com ele. Não era, digamos assim, um
plantel de Ava Gardner e Marylin Monroe, mas o Bibi também não era o Bogart.
Enfim, era o que se tinha de mais sofisticado para o consumo local.
Entenda-se bem, a
escolha não era Bibi ou Bogart, mas Bibi ou Inezildo. Vem cá, maninha, me diz,
sinceramente, quem olharia para um cara chamado Inezildo e apelidado Bate-Papo?
Ninguém. Nem a Teca. O Inezildo, de profissão rádio-eletricista, nunca tinha
viajado sequer a Manacapuru. O mulherio estava mesmo vidrado era no Jefferson
(com dois efes como o presidente americano), exatamente porque era um
jornalista vindo do Rio de Janeiro.
Aí, não tive mais
dúvidas. Decidi estudar jornalismo no Rio, deixando o meu Cariri no primeiro
pau-de-arara que apareceu: o conhecido voo-da-fome, no constelation da Panair, que durou nove horas, com a aeromoça servindo, apenas
uma vez, pão-doce com xarope de guaraná. Passageiros previdentes levavam
galinha assada e farofa, como num piquenique.
Na despedida, no
aeroporto da Ponta Pelada, lembrei-me de Bogart no filme Casablanca. Então, da
escadinha do avião, arrisquei um último olhar a Manaus: minha tia Helena, de
longe, esfregava freneticamente o indicador no polegar, apontava para os pés e
girava os cinco dedos. Tradução: bota o dinheiro dentro do sapato, que no Rio
há muito ladrão. Era uma mixaria, uns centavos poupados com sacrifício de mãe
viúva. Por essa, o Bogart não passou.
Se naquela tarde de
agosto dos anos 60 tivesse chovido, eu teria assistido a aula do Nina e hoje -
quem sabe? - seria um químico, um farmacêutico, um merdólogo especializado em
amebas, giárdias ou outros protozoários. Devo a uma aula gazetada, ao Bogart,
ao Bibi e ao Orígenes Martins - que me deu de presente a passagem de avião - a
escolha de uma profissão, que permite ficarmos juntos hoje, leitor (a).
Agradece a eles, se achas que o papo merece.
O Bogart morreu, mas
continua encantando o mundo com seus filmes. O Nina aposentou-se. O Bibi
desencalhou umas das minhas irmãs, com quem é casado até hoje. O Orígenes, dono
do CIESA, virou empresário respeitado. Quanto a mim, o que efetivamente ganhei
com o jornalismo? Mais de trinta anos depois de pegar um ita no norte e ir pro
Rio morar, cadê as viagens, as bebidas finas, os restaurantes sofisticados, os
hotéis de luxo e, sobretudo, as mulheres exuberantes e perfumadas? Cadê?
Ninguém me falou que a poupança dentro do sapato acabaria logo e que, no longo
caminho de aprendizagem, eu encontraria porrada, prisão e exílio.
P.S. Com ligeiras
modificações, essa cronica foi publicada na Revista Circuito Integrado, de
Manaus, no número de abril de 2000.
*
Jornalista e historiador
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