domingo, 18 de outubro de 2015

Vespucci


* Por Pedro Calmon


Americus Vespucci, florentino de gênio que utilizou nos largos mares a ciência de Toscanelli, teve sobre os seus companheiros das viagens descobridoras a vantagem de um talento literário inquieto e ousado.

Na era dos nautas discretos - os grandes silenciosos da História - ele manejou um estilo. A sua rude mão de piloto a serviço de Espanha e Portugal empunhou, com a mesma naturalidade, o timão do barco e a pena das cartas noticiosas, que deram fama e curso aos seus feitos ilustres. A injustiça que amargaria Colombo, vendo chamar-se "América" o continente que achara, não é ingratidão de contemporâneos desatentos, porém êxito de escritor imaginoso. No começo do século XVI, Vespucci foi o Marco Polo do Ocidente. A relação epistolar de suas quatro expedições inspirou a Waldseemuller, geógrafo loreno, a proposta entusiasta e benévola de se lhe dar o nome ao "mundus novus". A idéia não prevaleceria não fora a sugestão, forte e amável, daquelas missivas bem traçadas, que em italiano, em latim, alvoroçavam pelas universidades os espíritos jovens e sonhadores. Assim apareceu a América. Usurpação visível duma propriedade: a do genovês que pudera desencantar o mistério do oceano sem amolecer o coração dos homens. Mas sucesso esplêndido duma literatura: a ênfase romanesca do navegador.

Roma consagrou-lhe os méritos. Francesco de Albertini, no "Opusculoum de mirabilibus novae & veteris urbs Romae", publicado em 1510, afirma ser Vespucci quem "primeiro descobriu ilhas e países ignotos"... Parece que os portugueses não concordam plenamente com esses títulos: tanto que, em 1507, se deixou ele atrair de novo pelo rei espanhol, indo amadurecer em Sevilha o plano, que Fernão de Magalhães realizaria na década seguinte, de procurar pelo sul do Novo Mundo a passagem marítima para as Molucas.

Iludir-se-ão - é certo - os que presumirem que o marinheiro de Florença era um impostor, um fútil ou um novelista.

A sua verdadeira fisionomia transparece da carta inédita que recentemente lhe divulgou Roberto Ridolfi (Una lettera inedita de Amerigo Vespucci, Firenze 1937, e Ancora sopra la lettera, Firenze, 1938).

Refere-se à sua terceira viagem, a de 1501, exatamente a que trouxe pela primeira vez às costas do Brasil e da Patagônia. Revela-o cosmógrafo erudito, senhor dos miúdos segredos da profissão dos físicos do mar (astrólogos práticos da balestilha e da observação das estrelas), antecipando-se até aos conhecimentos de sua época, nos cálculos da variação da agulha e das longitudes pelas conjunções lunares... Cita o rei Afonso o Sábio, Giovanni de Montereggio, Blanchino e Abraão Zacuto, cujos almanachs os pilotos de Lagos e Lisboa tinham posto nas mãos dos outros mareantes. O que nos espanta nos preparativos da grossa viagem de Magalhães, a altura de leste-oeste graças aos ensinamentos do português Rui Faleiro, capaz de esclarecer a rota do circunavegador através dos oceanos, dir-se-ia familiar a Vespucci, na maneira como se exprime: "dico et per iscuxarmi dal detto de malivoli dico averlo conosciuto nelli eclixi nelle congniunzione della luna colli pianeti..." Matemático das travessias, com a coragem de experimentar as suas idéias e o bom gosto de as versar numa linguagem humanista e galharda, o que lhe faltava era a constância. Supriu-lha a sorte. Foi o mais afortunado entre os pilotos que conduziram os estandartes católicos para estas plagas. E o mais célebre...

Em 1503, após ter percorrido o litoral da América do Sul de alto a baixo, deixou no Brasil vinte e quatro soldados numa feitoria, como guardiães da soberania lusitana ao pau de tinturaria, que os franceses já nos vinham disputar.

Ignora-se o exato sítio e o destino do estabelecimento.

Que fim tiveram os 24 companheiros de Americus?

Por não haver mais documento ou informação que deles diga, até às expedições de reconhecimento e polícia que el-rei D. Manuel mandou ao Brasil, é de crer que não resistissem aos índios hostis. Acabaram obscuramente na terra do seu exílio. O poderoso monarca não pôde ou não quis retirá-los da sua pobre "feitoria": e desapareceram com ela. O sombrio drama ficará para sempre ignorado.

As cartas de Vespucci, entretanto, impressionaram desigualmente as inteligências do seu tempo.

(Figuras de azulejo, 1939.)



* Professor, político, historiador biógrafo, ensaísta e orador, membro da Academia Brasileira de Letras.

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