Vespucci
* Por
Pedro Calmon
Americus Vespucci,
florentino de gênio que utilizou nos largos mares a ciência de Toscanelli, teve
sobre os seus companheiros das viagens descobridoras a vantagem de um talento
literário inquieto e ousado.
Na era dos nautas
discretos - os grandes silenciosos da História - ele manejou um estilo. A sua
rude mão de piloto a serviço de Espanha e Portugal empunhou, com a mesma
naturalidade, o timão do barco e a pena das cartas noticiosas, que deram fama e
curso aos seus feitos ilustres. A injustiça que amargaria Colombo, vendo
chamar-se "América" o continente que achara, não é ingratidão de
contemporâneos desatentos, porém êxito de escritor imaginoso. No começo do
século XVI, Vespucci foi o Marco Polo do Ocidente. A relação epistolar de suas
quatro expedições inspirou a Waldseemuller, geógrafo loreno, a proposta
entusiasta e benévola de se lhe dar o nome ao "mundus novus". A idéia
não prevaleceria não fora a sugestão, forte e amável, daquelas missivas bem
traçadas, que em italiano, em latim, alvoroçavam pelas universidades os
espíritos jovens e sonhadores. Assim apareceu a América. Usurpação visível duma
propriedade: a do genovês que pudera desencantar o mistério do oceano sem
amolecer o coração dos homens. Mas sucesso esplêndido duma literatura: a ênfase
romanesca do navegador.
Roma consagrou-lhe os
méritos. Francesco de Albertini, no "Opusculoum de mirabilibus novae &
veteris urbs Romae", publicado em 1510, afirma ser Vespucci quem
"primeiro descobriu ilhas e países ignotos"... Parece que os
portugueses não concordam plenamente com esses títulos: tanto que, em 1507, se
deixou ele atrair de novo pelo rei espanhol, indo amadurecer em Sevilha o
plano, que Fernão de Magalhães realizaria na década seguinte, de procurar pelo
sul do Novo Mundo a passagem marítima para as Molucas.
Iludir-se-ão - é certo
- os que presumirem que o marinheiro de Florença era um impostor, um fútil ou
um novelista.
A sua verdadeira
fisionomia transparece da carta inédita que recentemente lhe divulgou Roberto
Ridolfi (Una lettera inedita de Amerigo Vespucci, Firenze 1937, e Ancora sopra
la lettera, Firenze, 1938).
Refere-se à sua
terceira viagem, a de 1501, exatamente a que trouxe pela primeira vez às costas
do Brasil e da Patagônia. Revela-o cosmógrafo erudito, senhor dos miúdos
segredos da profissão dos físicos do mar (astrólogos práticos da balestilha e
da observação das estrelas), antecipando-se até aos conhecimentos de sua época,
nos cálculos da variação da agulha e das longitudes pelas conjunções lunares...
Cita o rei Afonso o Sábio, Giovanni de Montereggio, Blanchino e Abraão Zacuto,
cujos almanachs os pilotos de Lagos e Lisboa tinham posto nas mãos dos outros
mareantes. O que nos espanta nos preparativos da grossa viagem de Magalhães, a
altura de leste-oeste graças aos ensinamentos do português Rui Faleiro, capaz
de esclarecer a rota do circunavegador através dos oceanos, dir-se-ia familiar
a Vespucci, na maneira como se exprime: "dico et per iscuxarmi dal detto
de malivoli dico averlo conosciuto nelli eclixi nelle congniunzione della luna
colli pianeti..." Matemático das travessias, com a coragem de experimentar
as suas idéias e o bom gosto de as versar numa linguagem humanista e galharda,
o que lhe faltava era a constância. Supriu-lha a sorte. Foi o mais afortunado
entre os pilotos que conduziram os estandartes católicos para estas plagas. E o
mais célebre...
Em 1503, após ter
percorrido o litoral da América do Sul de alto a baixo, deixou no Brasil vinte
e quatro soldados numa feitoria, como guardiães da soberania lusitana ao pau de
tinturaria, que os franceses já nos vinham disputar.
Ignora-se o exato
sítio e o destino do estabelecimento.
Que fim tiveram os 24
companheiros de Americus?
Por não haver mais
documento ou informação que deles diga, até às expedições de reconhecimento e
polícia que el-rei D. Manuel mandou ao Brasil, é de crer que não resistissem
aos índios hostis. Acabaram obscuramente na terra do seu exílio. O poderoso
monarca não pôde ou não quis retirá-los da sua pobre "feitoria": e
desapareceram com ela. O sombrio drama ficará para sempre ignorado.
As cartas de Vespucci,
entretanto, impressionaram desigualmente as inteligências do seu tempo.
(Figuras de azulejo,
1939.)
*
Professor, político, historiador biógrafo, ensaísta e orador, membro da
Academia Brasileira de Letras.
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