Oração aos moços
* Por
Ruy Barbosa
[...]
Estou-vos abrindo o
livro da minha vida. Se me não quiserdes aceitar como expressão fiel da
realidade esta versão rigorosa de uma das suas páginas, com que mais me
consolo, recebei-a, ao menos, como ato de fé, ou como conselho de pai a filhos,
quando não como o testamento de uma carreira, que poderá ter discrepado, muitas
vezes, do bem, mas sempre o evangelizou com entusiasmo, o procurou com fervor,
e o adorou com sinceridade.
Desde que o tempo
começou, lento lento, a me decantar o espírito do sedimento das paixões, com
que o verdor dos anos e o amargor das lutas o enturbavam, entrando eu a
considerar com filosofia nas leis da natureza humana, fui sentindo quanto esta
necessita da contradição, como a lima dos sofrimentos a melhora, a que ponto o
acerbo das provações a expurga, a tempera, a nobilita, a regenera. Então vim a
perceber vivamente que imensa dívida cada criatura da nossa espécie deve aos
seus inimigos e desfortunas. Por mais desagrestes que sejam os contratempos da
sorte e as maldades dos homens, raro nos causam mal tamanho, que nos façam
ainda maior bem. Ai de nós, se esta purificação gradual, que nos deparam as
vicissitudes cruéis da existência, não encontrasse a colaboração providencial
da fortuna adversa e dos nossos desafetos. Ninguém mete em conta o serviço
contínuo, de que lhes está em obrigação.
Diríeis, até, que,
mandando-nos amar aos nossos inimigos, em boa parte nos quis o divino
legislador entremostrar o muito de que eles nos são credores. A caridade com os
que nos malquerem, e os que nos malfazem, não é, em bem larga escala, senão
pago dos benefícios, que, mal a seu grado, mas muito deveras, eles nos
granjeiam.
Destarte, não
equivocaremos a aparência com a realidade, se, nos dissabores que malquerentes
e malfazentes nos propinam, discernirmos a quota de lucro, com que eles, não
levando em tal o sentido, quase sempre nos favorecem. Quanto é pela minha
parte, o melhor do que sou, bem assim o melhor do que me acontece,
freqüentemente acaba o tempo convencendo-me de que não me vem das doçuras da
fortuna propícia, ou da verdadeira amizade, senão sim que o devo,
principalmente, às maquinações dos malévolos e às contradições da sorte
madrasta. Que seria, hoje, de mim, se o veto dos meus adversários, sistemático
e pertinaz, me não houvesse poupado aos tremendos riscos dessas alturas,
"alturas de Satanás", como as de que fala o Apocalipse, em que tantos
se têm perdido, mas a que tantas vezes me tem tendo exalçar o voto dos meus
amigos? Amigos e inimigos estão, amiúde, em posições trocadas. Uns nos querem
mal, e fazem-nos bem. Outros nos almejam o bem, e nos trazem o mal.
Não poucas vezes,
pois, razão é lastimar o zelo dos amigos, e agradecer a malevolência dos
opositores. Estes nos salvam, quando aqueles nos extraviam. De sorte que, no
perdoar aos inimigos, muita vez não vai somente caridade cristã, senão também
justiça ordinária e reconhecimento humano. E, ainda quando, aos olhos do mundo,
como aos do nosso juízo descaminhado, tenham logrado a nossa desgraça, bem pode
ser que, aos olhos da filosofia, aos da crença e aos da verdade suprema, não
nos hajam contribuído senão para a felicidade.
Este, senhores, será
um saber vulgar, um saber rasteiro, um saber só de experiência feito.
Não é o saber da
ciência, que se libra acima das nuvens, e alteia o vôo soberbo, além das
regiões siderais, até aos páramos indevassáveis do infinito. Mas, ainda assim,
este saber fácil mereceu a Camões o ter a sua legenda insculpida em versos
imortais; quanto mais a nós outros, "bichos da terra tão pequenos", a
ninharia de ocupar divagações, como estas, de um dia, folhas de árvore morta,
que, talvez, não vinguem ao de amanhã.
Da ciência estamos
aqui numa catedral. Não cabia em um velho catecúmeno vir ensinar a religião aos
seus bispos e pontífices, nem aos que agora nela recebem as ordens do seu
sacerdócio. E hoje é féria, ensejo para tréguas ao trabalho ordinário, quase
dia santo. Labutastes, a semana toda, o vosso curso de cinco anos, com teorias,
hipóteses e sistemas, com princípios, teses e demonstrações, com leis, códigos
e jurisprudências, com expositores, intérpretes e escolas. Chegou o momento de
vos assentardes, mão por mão, com os vossos sentimentos, de vos pordes à fala
com a vossa consciência, de praticardes familiarmente com os vossos afetos,
esperanças e propósitos.
[...]
Estudante sou. Nada
mais. Mau sabedor, fraco jurista, mesquinho advogado, pouco mais sei do que
saber estudar, saber como se estuda, e saber que tenho estudado. Nem isso mesmo
sei se saberei bem. Mas, do que tenho logrado saber, o melhor devo às manhãs e
madrugadas. Muitas lendas se têm inventado, por aí, sobre excessos da minha
vida laboriosa. Deram, nos meus progressos intelectuais, larga parte ao uso em
abuso do café e ao estímulo habitual dos pés mergulhados n’água fria. Contos de
imaginadores. Refratário sou ao café. Nunca recorri a ele como a estimulante
cerebral. Nem usa só vez na minha vida busquei num pedilúvio o espantalho do
sono.
Ao que devo, sim, o
mais dos frutos do meu trabalho, a relativa exabundância de sua fertilidade, a
parte produtiva e durável da sua safra, é às minhas madrugadas. Menino ainda,
assim que entrei ao colégio, alvidrei eu mesmo a conveniência desse costume, e
daí avante o observei, sem cessar, toda a vida. Eduquei nele o meu cérebro, a
ponto de espertar exatamente à hora, que comigo mesmo assentava, ao dormir.
Sucedia, muito amiúde, encetar eu a minha solitária banca de estudo à uma ou às
duas da antemanhã. Muitas vezes me mandava meu pai volver ao leito; e eu fazia
apenas que lhe obedecia, tornando, logo após, àquelas amadas lucubrações, as de
que me lembro com saudade mais deleitosa e entranhável.
Tenho, ainda hoje,
convicção de que nessa observância persistente está o segredo feliz, não só das
minhas primeiras vitórias no trabalho, mas de quantas vantagens alcancei jamais
levar aos meus concorrentes, em todo o andar dos anos, até à velhice. Muito há
que já não subtraio tanto às horas da cama, para acrescentar às do estudo. Mas
o sistema ainda perdura, bem que largamente cerceado nas antigas imoderações.
Até agora, nunca o sol deu comigo deitado e, ainda hoje, um dos meus raros e
modestos desvanecimentos é o de ser grande madrugador, madrugador impenitente.
Mas, senhores, os que
madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o
refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas,
principalmente, nas idéias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos,
mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um
sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de
aquisições digeridas.
Já se vê quanto vai do
saber aparente ao saber real. O saber de aparência crê e ostenta saber tudo. O
saber de realidade, quanto mais real, mais desconfia, assim do que vai
apreendendo, como do que elabora.
Haveis de conhecer,
como eu conheço, países, onde quanto menos ciência se apurar, mais sábios
florescem. Há, sim, dessas regiões por este mundo além. Um homem (nessas terras
de promissão) que nunca se mostrou lido ou sabido em coisa nenhuma, tido e
havido é por corrente e moente no que quer que seja; porque assim o aclamam as
trombetas da política, do elogio mútuo, ou dos corrilhos pessoais, e o povo
subscreve a néscia atoarda. Financeiro, administrador, estadista, Chefe de
Estado, ou qualquer outro lugar de ingente situação e assustadoras
responsabilidades, é, a pedir de boca, o que se diz mão de pronto desempenho,
fórmula viva a quaisquer dificuldades, chave de todos os enigmas.
[...]
Ponho exemplo,
senhores. Nada se leva em menos conta, na judicatura, a uma boa-fé de ofício
que o vezo de tardança nos despachos e sentenças. Os códigos se cansam debalde
em o punir. Mas a geral habitualidade e a conivência geral o entretêm,
inocentam e universalizam. Destarte se incrementa e desmanda ele em proporções
incalculáveis, chegando as causas a contar a idade por lustros, ou décadas, em
vez de anos.
Mas justiça atrasada
não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal
nas mãos do julgador contraria o direito das partes, e, assim, as lesa no
patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a
lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante
de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinqüente poderoso, em cujas
mãos jaz a sorte do litígio pendente
Nas sejais, pois,
dessas magistrados, nas mãos de quem os autos penam como as almas do
purgatório, ou arrastam sonos esquecidos como as preguiças do mato.
Não vos pareçais com
esses outros juízes, que, com tabuleta de escrupulosos, imaginam em risco a sua
boa fama, se não evitarem o contato dos pleiteantes, recebendo-os com má
sombra, em lugar de os ouvir a todos com desprevenção, doçura e serenidade.
Não imiteis os que, em
se lhes oferecendo o mais leve pretexto, a si mesmos põem suspeições
rebuscadas, para esquivar responsabilidades, que seria do seu dever arrostar
sem quebra de ânimo ou de confiança no prestígio dos seus cargos.
Não sigais os que
argumentam com o grave das acusações, para se armarem de suspeita e execração
contra os acusados; como se, pelo contrário, quanto mais odiosa a acusação, não
houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores, e menos perder de
vista a presunção de inocência, comum a todos os réus, enquanto não liquidada a
prova e reconhecido o delito.
Não acompanheis os
que, no pretório, ou no júri, se convertem de julgadores em verdugos,
torturando o réu com severidades inoportunas, descabidas, ou indecentes; como
se todos os acusados não tivessem direito à proteção dos seus juízes, e a lei
processual, em todo o mundo civilizado, não houvesse por sagrado o homem, sobre
quem recai acusação ainda inverificada.
Não estejais com os
que agravam o rigor das leis, para se acreditar com o nome de austeros e
ilibados. Porque não há nada menos nobre e aplausível que agenciar uma
reputação malignamente obtida em prejuízo da verdadeira inteligência dos textos
legais.
Não julgueis por
considerações de pessoas, ou pelas do valor das quantias litigadas, negando as
somas, que se pleiteiam, em razão da sua grandeza, ou escolhendo, entre as
partes na lide, segundo a situação social delas, seu poderio, opulência e
conspicuidade. Porque quanto mais armados estão de tais armas os poderosos,
mais inclinados é de recear que sejam à extorsão contra os menos ajudados da
fortuna; e, por outro lado, quanto maiores são os valores demandados e maior,
portanto, a lesão argüida, mais grave iniqüidade será negar a reparação, que se
demanda.
Não vos mistureis com
os togados, que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado, ao
Governo, à Fazenda; por onde os condecora o povo com o título de
"fazendeiros". Essa presunção de terem, de ordinário, razão contra o
resto do mundo, nenhuma lei a reconhece à Fazenda, ao Governo, ou ao Estado.
Antes, se admissível
fosse aí qualquer presunção, havia de ser em sentido contrário; pois essas
entidades são as mais irresponsáveis, as que mais abundam em meios de
corromper, as que exercem as perseguições, administrativas, políticas e
policiais, as que, demitindo funcionários indemissíveis, rasgando contratos
solenes, consumando lesões de toda a ordem (por não serem os perpetradores de
tais atentados os que os pagam), acumulam, continuamente, sobre o tesouro
público terríveis responsabilidades.
(Discurso na Faculdade
de Direito de São Paulo, 1920. Editado em livro, 1921).
*
Advogado, jornalista, jurista, político, diplomata, ensaísta e orador, duas
vezes candidato à Presidência de República, um dos fundadores da Academia
Brasileira de Letras.
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