Romance sem nada de convencional
“Dora Bruder” – livro lançado, originalmente, na França, em
1997 e relançado, em 2014, no Brasil, pela Editora Rocco – é uma das publicações
mais fascinantes, peculiares e originais (do próprio Patrick Modiano, seu autor
e de outro escritor qualquer) que tive a oportunidade de ler nos últimos tempos.
Até agora, confesso, nem mesmo sei como caracterizá-lo. É romance? É novela? É
ensaio? É memorialismo? Não sei!!! E isso importa? Tudo bem, o livro é
classificado pelos críticos como “romance”. Consideremo-lo, pois, como tal.
Todavia, o livro mescla, simultaneamente, a uma suposta
história fictícia (e nem tenho certeza que seja mesmo ficção), com memórias
pessoais do autor, com dados autobiográficos, com reflexões filosóficas etc.etc.etc,
Depois de sua leitura (e de algumas outras publicações de Modiano), entendo o
que motivou a Academia Sueca e conferir-lhe o Prêmio Nobel de Literatura de
2014. Eu faria a mesma escolha. A polêmica e cobiçadíssima premiação literária
anual está, sem dúvida, em ótimas mãos. Afinal, o premiado exorbita nos quesitos
originalidade e criatividade.
A narrativa praticamente começa quando um escritor (que
Modiano insinua se tratar dele próprio), dá de cara, e casualmente (isso em
1988), nas páginas de um exemplar muito velho do “Paris-Soir” (de dezembro de
1941, época em que a França estava sob ocupação nazista) com um anúncio sobre o
desaparecimento de uma adolescente, colocado certamente pelos seus pais. O texto
do jornal dizia: “Procura-se uma jovem, Dora Bruder, 15 anos, 1,55cm, rosto
oval, olhos marrom acinzentados, casacão cinza, suéter bordô, saia e chapéu
azul-marinho,sapatos marrons. Qualquer informação dirigir-se ao Sr. e à Sra.
Bruder, bulevar Ornano, 41, Paris”. Tentando imaginar o que poderia ter
acontecido com a menina, o escritor concluiu que ele e a desaparecida tinham
coisas em comum. Partilharam, por ocasião do seu desaparecimento, os mesmos
espaços urbanos, locais da cidade em comum, suas ruas e praças, além de
vivências. E isso sem nunca terem se encontrado. É possível, até, que tenham se
cruzado, casualmente, sem que se reconhecessem e nem se apresentassem um ao
outro em nenhuma ocasião.
Como se fora um detetive, empenhado em uma investigação, Modiano
sai à procura da parisiense Dora Bruder, tendo como fio da meada apenas os
escassos dados do anúncio do “Paris-Soir”. Ou seja, que se tratava da filha de
Ernest Bruder e de Cécile Burdej. E que nascera em 25 de fevereiro de 1926. Seu
ponto de partida foi esse e os inconclusivos dados que encontrou nas repartições
oficiais, como o registro de nascimento da moça, relatórios policiais e o que
conseguiu saber nas ruas de Paris dos que conheceram a adolescente. Descobriu
que Dora era judia, o que representava quase uma sentença de morte naquela
França ocupada de 1941, em que milhares de judeus eram enviados para os campos
de extermínio da Alemanha sem que ninguém se importasse. Ao longo da sua busca,
o escritor “revive” a própria
adolescência, as memórias dos seus pais, as dificuldades e temores que eles
tiveram e, assim, traça paralelos entre as vidas das duas famílias: a dos
Bruders e a dos Modianos.
Na tentativa de refazer os passos de Dora Bruder e saber se
estava viva ou morta e, caso vivesse, onde estava, o autor, nas entrelinhas,
como se não quisesse nada, chama a atenção para o sinistro passado da França
sob a ocupação nazista. Não se conforma que ele tenha sido como que varrido
para debaixo do tapete. Rebela-se, intimamente, com o fato de que se tenha
apagado por completo da memória a existência de tantas pessoas comuns, mas que
viveram, amaram, trabalharam e tiveram sonhos nessa mesma Paris, como se nunca
tivessem nem mesmo existido. Em sua ingente pesquisa, o escritor consegue muito
pouco: um endereço, uma certidão de nascimento, algumas fotografias, alguns
documentos e vagas menções em relatórios e informações sobre os pais da moça.
Nada mais do que isso. Passados pouco mais de 40 anos do desaparecimento de
Dora Bruder, Paris já não era mais a mesma cidade, posto que sua geografia não
tivesse mudado o bastante. Apesar disso... o cenário, em muitos casos, era muito
diferente. Em certo trecho do livro Modiano desabafa: “Foi tudo aniquilado,
para que se construísse uma espécie de cidade suíça, da qual não se pudesse
colocar em dúvida sua neutralidade”.
“São pessoas que não deixam vestígios atrás de si.
Praticamente anônimas. Não podemos separá-las de certas ruas de Paris, de
certas paisagens de subúrbio, onde descobri, por acaso, que moraram. O que
sabemos delas se resume, quase sempre, a um endereço apenas. E essa precisão
topográfica contrasta com o que vamos ignorar para sempre de suas vidas – esse
branco, esse bloco de desconhecimento e silêncio”, escreve. Diz, ainda: “Ao
escrever este livro, lanço apelos, como sinais de farol, mas infelizmente
custa-me a acreditar que possam vir iluminar a noite”. O crítico e o leitor
podem até não gostar do estilo de Patrick Modiano (que, da minha parte, aprecio
sem a menor restrição). Mas ninguém pode afirmar que se trate de um escritor
comum, medíocre e convencional. Para mim, que não o conhecia, até ele ser
premiado com o Nobel, é uma das mais gratas descobertas da Literatura dos
últimos trinta ou quarenta anos.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Eu acredito no que diz, Pedro. Tenho de ler mais.
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