sexta-feira, 25 de setembro de 2015

A função da crítica


* Por Sílvio Romero


Não deixa de ser coisa perigosa o publicar neste pais um livro de crítica. Além da falta absoluta que existe aqui desta ciência e disciplina de espírito, acresce que os nossos ledores, grandes e pequenos, como bons burgueses, estão tranquilíssimos com tudo quanto os cerca, e repelem soberbamente aquilo que os possa perturbar.

Seus prejuízos contra o espírito crítico, quando pretendem revestir-se de um aspecto sério, resumem-se nisto: “este país é novo, e sua literatura nascente; a crítica longe de acoroçoar desanima; ela é, pois, muito prejudicial”. É coisa que se me tem repetido algumas dúzias de vezes. O disparate é transparente. Aquilo envolve uma falsa idéia do que seja a nova ciência de críticar, sua força e seu alcance. Em que pode prejudicar ao desenvolvimento espiritual de um povo o estudo que mostre-lhe quais as suas conquistas históricas e suas aptidões imanentes? Longe de ser-lhe nocivo, é-lhe de todo animador; e, para mostrá-lo, basta lembrar o exemplo da Alemanha, cuja literatura tomou o soberbo ascendente, que a distingue, fundada na crítica, depois do grande movimento provocado por Lessing.

A nós que temos vivido de contrafações indigestas, a nós que não temos vida própria, que somos um dos povos mais deteriorados do globo; que, espécie de contrabandistas do pensamento, não temos a forma das grandes conquistas e das grandes verdades da ciência, só a crítica, a tão desdenhada crítica, nos pode preparar um futuro melhor.

Ela, aqui, não deve limitar-se ao empenho de mostrar o largo caminho que nos cumpre trilhar; deve, antes de tudo, desobstruir o terreno, juncado de velhos preconceitos e falsidades; deve alçar o látego destruidor e desfazer as legendas, para afirmar a luz.

Neste ponto interrompe-me um pobre de espírito: “mas isto é escrever com paixão; é ser bilioso...” A frase é da moda; mas não cheira bem.

Sim, e escrever com paixão, isto é, com pureza e verdade; é ser apaixonado, isto é, ter a nobreza das boas convicções e até dos bons estímulos.

Para certa gente, escrever sem paixão eu sei o que quer dizer: é faltar à consciência e à dignidade, ter a cabeça cheia de parvoíces, que se derramam sobre o papel; é chafurdar-se constantemente no pestilento pélago dos elogios mentidos e das bajulações indecorosas. Escrever sem paixão é repetir, em todos os tons possíveis, as velhas frases louvaminheiras, que povoaram este país de gênios e de prodígios, de sábios e de brilhantes; gênios e sábios em alguns medíocres, que nos têm dado uns folhetins... prodígios e brilhantes alcatifando os nossos rios gigantescos e as nossas selvas seculares...

Quem ousa desafinar no meio do geral concerto é apontado nada menos do que como “um invejoso das glórias alheias”.

A inveja vem a ser assim o incentivo que dirige o crítico no Brasil!...

Em que vale, portanto, o sacrifício de proclamar a verdade a este povo, correndo o risco de ser apontado como o possuidor de um sentimento repugnante?

Em nada.

Resta, porém, sempre a consolação de haver contribuído com alguma coisa para derrocar o podre edifício de velhos erros, e limpar a atmosfera que nos sufoca. Di-lo-ei, pois:

A vida espiritual brasileira é pobre e mesquinha, desconceituada e banal para quem sabe pensar a luz de novos princípios. Aferida pelo moderno método de comparação, inaugurado há muito nas literaturas europeias, ostenta-se caprichosamente estéril. A força de desprezarmos a corrente de nossa própria história e pormo-nos fora do curso das idéias livres, eis-nos chegados ao ponto de não passarmos de ínfimos glosadores das vulgaridades lusas e francesas; eis-nos dando o espetáculo de um povo que não pensa e produz por si..

Todos os nossos pequeninos movimentos literários são eloquentes para atestá-lo.

Basta considerar, por agora, a renovação romântica deste século com seu fruto predileto, o Indianismo. Nas grandes nações da Europa, como a Inglaterra e a Alemanha, o romantismo foi, em parte, uma volta aos sentimentos populares, uma ressurreição do passado no que ele tinha de mais aproveitável. Não assim entre nós. O nosso velho lirismo, com sua veia epigramática, que teve um cultor em Gregório de Matos, e um representante em Gonzaga, foi esquecido. A velha modinha foi abandonada, seu alcance desdenhado, sua música preterida e as imitações francesas nos assoberbaram. Desprezada a vida histórica, atiramo-nos aos desvarios do ultrarromantismo posterior à revolução de Julho, com todos os seus enganos e meticulosas fascinações. A crítica não nos ensinou a produzir; os elementos da nossa história e do nosso pensamento não foram elucidados. O papel dos três concorrentes da nossa população não foi indicado, e um falso sentimento de nacionalidade jogou-nos para o caboclo, e glorificamo-lo.

Compreendo que na aridez do século passado, quando a literatura da metrópole dava o triste espetáculo de homens que acalentavam frases e tropos retóricos, julgando produzir idéias, compreendo que, então, dois homens de talento elevado, Durão e Basílio, escrevendo na Europa, voltados para a pátria e aproximando-se da natureza, nos decantassem o selvagem.

A romântica brasileira, porém, que não entendeu nem a Basílio, nem a Durão, apostou-se a desdenhar os outros elementos da vida nacional, concentrando-a exclusivamente no caboclo.

Eis toda e falsidade.

Nossa poesia popular não foi estudada; nossas lendas, nossos costumes ficaram despercebidos; a ciência da crítica, que renovara o antigo terreno da filologia, das criações mitológicas e religiosas, o antigo terreno das primeiras manifestações humanas, nos ficou de todo fora do alcance.

Dizem que um dos méritos do movimento romântico europeu é haver contribuído para tão fecunda renovação.

No Brasil passaram-se as coisas diversamente. A romântica brasileira teve o prestígio de falsificar e obscurecer o estudo de nossas origens, e acumular trevas sobre os três primeiros séculos de nossa existência.

Aqueles que, como o escritor destas linhas, pretendem preparar o balanço do que fomos para indicar o que devemos fazer na hora atual, são espíritos que de todo romperam com as tradições de desconceituado sistema.

Atravessamos uma época de crise para o pensamento nacional: na política e na literatura o momento é grave. Numa, como noutra, nos falta a força própria. Bem como na ordem social nos falha a vida do município e a dignidade do trabalho independente, assim nas letras falece-nos o peso das convicções maduras e a sublime audácia dos espíritos emancipados.

E, todavia, é força dizê-lo, a velha romântica brasileira, com seu Indianismo; a pobre filosofia que nos ensinam, com suas sofisticarias indignas, estão mortas, como desacreditados se acham os dois bandos políticos, que tanto nos hão degradado. E é mister caminhar... O futuro, pois, deste povo não está nos poetas decrépitos, que lhe insuflam os males instintos; nos seus romancistas fabulistas, que lhe desnorteiam o critério; nos seus parlamentos e ministros, que o degradam e conspurcam com a mentira; nos seus grandes mágicos, que sabem todas as línguas e todas as ciências...

O futuro deste país deve estar nas convicções sinceras, nos caracteres intransigentes, sacrificados a honra, disseminados por aí além, desdenhados pelos poderosos do dia; e que ousam dizer a verdade ao povo, como ao rei; não a pretendida verdade dos declamadores; mas a verdade da história, a verdade da ciência.

Pelo que me toca, ela é Mein Eins und Alles, na frase do poeta. Isto só me basta. Estou acostumado com o abandono e o desdém.

Para concluir:

Os diferentes capítulos que formam este opúsculo foram quase todos, em épocas diversas, publicados no Recife e recebidos com indiferença por uns, e com indignação por outros. Fiquei satisfeito... Hoje que aparecem formando o seu corpo natural num volume, desejo-lhes o mesmo acolhimento. Isto para mim é um sintoma; neste país aquilo que muito agrada, tenho a certeza de que não presta.

Este pequeno volume faz parte de uma série de trabalhos meus aparecidos pela maior parte na imprensa provinciana, e que agora vão saindo em livros, sob a designação Oito anos de jornalismo.

A Filosofia no Brasil, já publicada, é o primeiro volume da série, a que também pertencem os Cantos do fim do século, já aparecidos, e outras obras, que seguir-se-ão. São trabalhos escritos e publicados para ocorrer às necessidades da colaboração jornalística, durante oito anos (1869-1876), que vivi em Pernambuco.

Hoje, passando por indispensáveis alterações, aparecem formando cada um seu todo compacto e natural. E que o pensamento de dar-lhes, oportunamente, essa forma, presidiu a sua confecção.

Possa a circunstância de que foram todos eles escritos entre os dezoito e os vinte e cinco anos, isto é, feitos por um moço, ainda naquele tempo, com a alma cheia de todas as santas ilusões da idade dos sonhos, servir-lhes de desculpa aos defeitos, se e que, non le plus esclave, mais le plus valet de tous les peuples, para falar como P. L. Courrier, sente ainda algum pendor para a equidade.

Fevereiro de 1880.

(A literatura brasileira e a crítica moderna. Ensaio de generalização, 1880).

* Crítico, ensaísta, folclorista, polemista, professor e historiador da literatura brasileira, membro da Academia Brasileira de Letras.



Nenhum comentário:

Postar um comentário