A função da crítica
* Por
Sílvio Romero
Não deixa de ser coisa
perigosa o publicar neste pais um livro de crítica. Além da falta absoluta que
existe aqui desta ciência e disciplina de espírito, acresce que os nossos
ledores, grandes e pequenos, como bons burgueses, estão tranquilíssimos com
tudo quanto os cerca, e repelem soberbamente aquilo que os possa perturbar.
Seus prejuízos contra
o espírito crítico, quando pretendem revestir-se de um aspecto sério,
resumem-se nisto: “este país é novo, e sua literatura nascente; a crítica longe
de acoroçoar desanima; ela é, pois, muito prejudicial”. É coisa que se me tem
repetido algumas dúzias de vezes. O disparate é transparente. Aquilo envolve
uma falsa idéia do que seja a nova ciência de críticar, sua força e seu
alcance. Em que pode prejudicar ao desenvolvimento espiritual de um povo o
estudo que mostre-lhe quais as suas conquistas históricas e suas aptidões
imanentes? Longe de ser-lhe nocivo, é-lhe de todo animador; e, para mostrá-lo,
basta lembrar o exemplo da Alemanha, cuja literatura tomou o soberbo
ascendente, que a distingue, fundada na crítica, depois do grande movimento
provocado por Lessing.
A nós que temos vivido
de contrafações indigestas, a nós que não temos vida própria, que somos um dos
povos mais deteriorados do globo; que, espécie de contrabandistas do
pensamento, não temos a forma das grandes conquistas e das grandes verdades da
ciência, só a crítica, a tão desdenhada crítica, nos pode preparar um futuro
melhor.
Ela, aqui, não deve
limitar-se ao empenho de mostrar o largo caminho que nos cumpre trilhar; deve,
antes de tudo, desobstruir o terreno, juncado de velhos preconceitos e
falsidades; deve alçar o látego destruidor e desfazer as legendas, para afirmar
a luz.
Neste ponto
interrompe-me um pobre de espírito: “mas isto é escrever com paixão; é ser
bilioso...” A frase é da moda; mas não cheira bem.
Sim, e escrever com
paixão, isto é, com pureza e verdade; é ser apaixonado, isto é, ter a nobreza
das boas convicções e até dos bons estímulos.
Para certa gente,
escrever sem paixão eu sei o que quer dizer: é faltar à consciência e à
dignidade, ter a cabeça cheia de parvoíces, que se derramam sobre o papel; é
chafurdar-se constantemente no pestilento pélago dos elogios mentidos e das
bajulações indecorosas. Escrever sem paixão é repetir, em todos os tons
possíveis, as velhas frases louvaminheiras, que povoaram este país de gênios e
de prodígios, de sábios e de brilhantes; gênios e sábios em alguns medíocres,
que nos têm dado uns folhetins... prodígios e brilhantes alcatifando os nossos
rios gigantescos e as nossas selvas seculares...
Quem ousa desafinar no
meio do geral concerto é apontado nada menos do que como “um invejoso das
glórias alheias”.
A inveja vem a ser
assim o incentivo que dirige o crítico no Brasil!...
Em que vale, portanto,
o sacrifício de proclamar a verdade a este povo, correndo o risco de ser
apontado como o possuidor de um sentimento repugnante?
Em nada.
Resta, porém, sempre a
consolação de haver contribuído com alguma coisa para derrocar o podre edifício
de velhos erros, e limpar a atmosfera que nos sufoca. Di-lo-ei, pois:
A vida espiritual
brasileira é pobre e mesquinha, desconceituada e banal para quem sabe pensar a
luz de novos princípios. Aferida pelo moderno método de comparação, inaugurado
há muito nas literaturas europeias, ostenta-se caprichosamente estéril. A força
de desprezarmos a corrente de nossa própria história e pormo-nos fora do curso
das idéias livres, eis-nos chegados ao ponto de não passarmos de ínfimos
glosadores das vulgaridades lusas e francesas; eis-nos dando o espetáculo de um
povo que não pensa e produz por si..
Todos os nossos
pequeninos movimentos literários são eloquentes para atestá-lo.
Basta considerar, por
agora, a renovação romântica deste século com seu fruto predileto, o
Indianismo. Nas grandes nações da Europa, como a Inglaterra e a Alemanha, o
romantismo foi, em parte, uma volta aos sentimentos populares, uma ressurreição
do passado no que ele tinha de mais aproveitável. Não assim entre nós. O nosso
velho lirismo, com sua veia epigramática, que teve um cultor em Gregório de
Matos, e um representante em Gonzaga, foi esquecido. A velha modinha foi
abandonada, seu alcance desdenhado, sua música preterida e as imitações
francesas nos assoberbaram. Desprezada a vida histórica, atiramo-nos aos desvarios
do ultrarromantismo posterior à revolução de Julho, com todos os seus enganos e
meticulosas fascinações. A crítica não nos ensinou a produzir; os elementos da
nossa história e do nosso pensamento não foram elucidados. O papel dos três
concorrentes da nossa população não foi indicado, e um falso sentimento de
nacionalidade jogou-nos para o caboclo, e glorificamo-lo.
Compreendo que na
aridez do século passado, quando a literatura da metrópole dava o triste
espetáculo de homens que acalentavam frases e tropos retóricos, julgando
produzir idéias, compreendo que, então, dois homens de talento elevado, Durão e
Basílio, escrevendo na Europa, voltados para a pátria e aproximando-se da
natureza, nos decantassem o selvagem.
A romântica
brasileira, porém, que não entendeu nem a Basílio, nem a Durão, apostou-se a
desdenhar os outros elementos da vida nacional, concentrando-a exclusivamente
no caboclo.
Eis toda e falsidade.
Nossa poesia popular
não foi estudada; nossas lendas, nossos costumes ficaram despercebidos; a
ciência da crítica, que renovara o antigo terreno da filologia, das criações
mitológicas e religiosas, o antigo terreno das primeiras manifestações humanas,
nos ficou de todo fora do alcance.
Dizem que um dos
méritos do movimento romântico europeu é haver contribuído para tão fecunda
renovação.
No Brasil passaram-se
as coisas diversamente. A romântica brasileira teve o prestígio de falsificar e
obscurecer o estudo de nossas origens, e acumular trevas sobre os três
primeiros séculos de nossa existência.
Aqueles que, como o
escritor destas linhas, pretendem preparar o balanço do que fomos para indicar
o que devemos fazer na hora atual, são espíritos que de todo romperam com as
tradições de desconceituado sistema.
Atravessamos uma época
de crise para o pensamento nacional: na política e na literatura o momento é
grave. Numa, como noutra, nos falta a força própria. Bem como na ordem social
nos falha a vida do município e a dignidade do trabalho independente, assim nas
letras falece-nos o peso das convicções maduras e a sublime audácia dos
espíritos emancipados.
E, todavia, é força
dizê-lo, a velha romântica brasileira, com seu Indianismo; a pobre filosofia
que nos ensinam, com suas sofisticarias indignas, estão mortas, como
desacreditados se acham os dois bandos políticos, que tanto nos hão degradado.
E é mister caminhar... O futuro, pois, deste povo não está nos poetas
decrépitos, que lhe insuflam os males instintos; nos seus romancistas
fabulistas, que lhe desnorteiam o critério; nos seus parlamentos e ministros,
que o degradam e conspurcam com a mentira; nos seus grandes mágicos, que sabem
todas as línguas e todas as ciências...
O futuro deste país
deve estar nas convicções sinceras, nos caracteres intransigentes, sacrificados
a honra, disseminados por aí além, desdenhados pelos poderosos do dia; e que
ousam dizer a verdade ao povo, como ao rei; não a pretendida verdade dos
declamadores; mas a verdade da história, a verdade da ciência.
Pelo que me toca, ela
é Mein Eins und Alles, na frase do poeta. Isto só me basta. Estou acostumado
com o abandono e o desdém.
Para concluir:
Os diferentes
capítulos que formam este opúsculo foram quase todos, em épocas diversas,
publicados no Recife e recebidos com indiferença por uns, e com indignação por
outros. Fiquei satisfeito... Hoje que aparecem formando o seu corpo natural num
volume, desejo-lhes o mesmo acolhimento. Isto para mim é um sintoma; neste país
aquilo que muito agrada, tenho a certeza de que não presta.
Este pequeno volume
faz parte de uma série de trabalhos meus aparecidos pela maior parte na
imprensa provinciana, e que agora vão saindo em livros, sob a designação Oito
anos de jornalismo.
A Filosofia no Brasil,
já publicada, é o primeiro volume da série, a que também pertencem os Cantos do
fim do século, já aparecidos, e outras obras, que seguir-se-ão. São trabalhos
escritos e publicados para ocorrer às necessidades da colaboração jornalística,
durante oito anos (1869-1876), que vivi em Pernambuco.
Hoje, passando por
indispensáveis alterações, aparecem formando cada um seu todo compacto e
natural. E que o pensamento de dar-lhes, oportunamente, essa forma, presidiu a
sua confecção.
Possa a circunstância
de que foram todos eles escritos entre os dezoito e os vinte e cinco anos, isto
é, feitos por um moço, ainda naquele tempo, com a alma cheia de todas as santas
ilusões da idade dos sonhos, servir-lhes de desculpa aos defeitos, se e que,
non le plus esclave, mais le plus valet de tous les peuples, para falar como P.
L. Courrier, sente ainda algum pendor para a equidade.
Fevereiro de 1880.
(A literatura
brasileira e a crítica moderna. Ensaio de generalização, 1880).
* Crítico, ensaísta, folclorista, polemista, professor e historiador da
literatura brasileira, membro da Academia Brasileira de Letras.
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