Eu, defasadamente
pós-moderna
* Por Anna Lee
Diante do portão de entrada do
cemitério de São Borja, numa rua de terra e malcuidada, quase não acredito que
estou aqui. O trajeto foi longo. Não existe aeroporto em São Borja nem vôo
direto para Uruguaiana, cidade mais próxima, onde dá para chegar de avião. Tive
de ir do Rio para Porto Alegre, de Porto Alegre para Uruguaiana, com uma escala
em Santo Tomé, por conta do mau tempo.
Em Uruguaiana, consegui um carro – se
posso chamar de carro o veículo que me transportou. Por R$ 100,00, o motorista
fez o trajeto de quase duas horas até São Borja. Foi camarada. Disse que
normalmente cobra R$ 300,00. Se ele não estava em condições de cobrar, muito
menos eu poderia pagar tanto.
Levei comigo a indicação de um hotel modesto,
na avenida Presidente Vargas, quase ao lado da casa onde Jango nasceu. Quando
me deram a dica, achei irrelevante a informação. Qual a diferença de ficar
perto ou longe da casa onde Jango nasceu? Na dúvida, preferi ficar o mais
próximo possível do meu assunto.
Mas, ao entrar na cidade, não foi
diretamente para o hotel que me dirigi. Pedi ao motorista que me deixasse no
cemitério. Ele não estranhou. Pelo contrário, até perguntou se eu precisava de
ajuda com a mala.
Eu sim. Estranhei a naturalidade com
que ele atendeu a meu pedido. Depois, vim a saber que o cemitério de São Borja
é, senão o único, um dos mais importantes pontos turísticos da cidade, que não
tem quase nenhum. Lá, estão os túmulos de Getúlio Vargas e Jango, um ao lado do
outro, ambos descuidados. Foi com espanto que verifiquei um detalhe que pouca
gente sabe. No meio dos dois túmulos, está o de Gregório Fortunato, o Anjo
Negro, chefe da Guarda Pessoal de Vargas e que teria sido o mandante do
atentado contra Lacerda, em agosto de 1954, episódio que provocaria o suicídio
do presidente da República.
“E se o corpo de Jango não estiver
aqui?” – foi o pensamento que me ocorreu, logo que me aproximei do jazigo de
sua família. Nos muitos artigos que li sobre a morte de Jango, há referência à
possibilidade de o corpo do ex-presidente não estar mais lá. Teria sido
retirado para evitar a exumação, que poderia provar seu envenenamento. Achava a
suspeita impossível, fantasiosa demais. Mas agora, diante do túmulo, não
resisto à curiosidade. Empurro a tampa de cimento para experimentar se sozinho
conseguiria removê-la.
Uma voz, de sotaque carregado, me tira
do delírio:
- Precisas de ajuda?
É o coveiro. Trabalha há anos ali,
perdera a noção do tempo, uns dez, talvez. Lembrava-se do enterro do “doutor”
Jango, mas, naquele tempo, era menino. Seu pai fora amigo do pai dele.
Realmente, contavam muitas histórias sobre o doutor, casos de aparição, de
barulhos no túmulo, até de vozes. Mas nunca ouvira a história sobre o corpo ter
sido retirado dali.
Quando morreu, Jango estava no exílio.
Foi longa a negociação para que seu corpo pudesse entrar no Brasil, vindo da
estância de Mercedes, na Argentina. Os militares resistiram. Não havia
permissão. Na aduana, na ponte de Uruguaiana, que separa um país do outro, seus
amigos não se conformavam com o fato de ele não poder ser enterrado em São
Borja, sua terra natal. Os trâmites foram demorados até que chegasse a
autorização do presidente Ernesto Geisel, com a condição de que ele fosse
tratado como qualquer um, ou seja, seu caixão deveria ser aberto e o cadáver
examinado.
Darcy Ribeiro, que fora ministro da
Educação e chefe da Casa Civil do governo Jango, teve sua experiência
individual no cemitério de São Borja:
Ali
estava todo o povo de São Borja e numerosos políticos. Não me deixaram falar,
temendo meus rompantes. Tancredo falou. Fiquei recordando a tristeza de Jango,
já não pela derrubada do governo, mas pela dureza da ditadura, que o impedia de
voltar ao Brasil. Nisso estão todos mancomunados. “Voltarei morto, com essa
gente segurando a alça do meu caixão”. Afastado da multidão que cercava a
sepultura, e cansado, me sentei num túmulo singelo de mármore que estava ali
perto. Só depois reparei que era o túmulo de Getúlio. Os dois plantados ali, um
do lado do outro.
Os dois relatos – um, a transcrição de
um trecho de O Beijo da Morte, que
escrevi em parceria com o Cony; o outro, um trecho do livro Confissões de Darcy Ribeiro – servem
aqui como um convite. Um convite que eu, defasadamente pós-moderna e crente de
que a verdade história única não existe, faço ao leitor para que comungue
comigo na idéia de que todos os acontecimentos estão sujeitos a múltiplas
interpretações.
Creio que a história se faz por meio de
vivências individuais. Que diga Darcy Ribeiro. Que diga o repórter, personagem
de O Beijo. Isso, num mundo que já
vai além da pós-modernidade e que tende a ser racional e objetivo, na busca
desesperada pela verdade única de todas as coisas. Uma forma de garantir a
sobrevivência na realidade caótica estabelecida.
Esse é o meu convite. Uma
possibilidade.
*Jornalista, mestranda em
Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da
Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros.
Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo
e Manchete.
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