segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Hora de fechar a porta

* Por Daniel Santos

Vinham de todas as partes, mas não mais com a ferocidade dos campos de guerra. Agora, a extrema inanição humilhava-os a ponto de sequer se encararem. Sem a presunção de superioridade, eram só ossos!

Súplices, olhos entocados de pavor sob a testa de sinuosas sem qualquer retidão, eles chegavam à casa de porta sempre aberta, onde há tempos a velha servia, ao menos, um prato de sopa a quem apetecesse.

Antes inimigos, sentavam-se lado a lado na grande mesa, silentes, cabisbaixos, unicamente entretidos com a maior das necessidades. E levavam a colher à boca, esganados, sem desperdício de uma só gota.

Muitos choravam ante a redenção do alimento, mas a antiga mesquinharia resistiu em alguns que sugeriam à velha escorraçar dali seus desafetos. Alheia a rancores, continuou provendo a quem minguava.
 
Só mais tarde, o grande sobressalto: ela viu a bonança derrotar não só a necessidade, mas também a memória. E recompôs-se a soberba! Tudo como antes. E, como antes, ela teria de voltar a abrir a porta. Para todos.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. Eu gosto muito das suas histórias, Daniel. São em prosa poética, e, se não têm rima, seguem uma métrica rigorosa.

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