Compositor nada popular
As músicas para as quais Machado de Assis compôs letras não eram, propriamente, populares. Não
se destinavam, por exemplo, a animar festas da faixa mais humilde da população
– a imensa maioria dos cerca de 300 mil habitantes do Rio de Janeiro, com
parcela considerável de escravos – e nem mesmo de boa parte da incipiente
classe média. Longe disso. Eram voltadas, isto sim, para uma camada mais
intelectualizada, diria da alta burguesia, que consumia, até com voracidade,
quase que exclusivamente, bens artísticos e culturais provenientes da Europa,
principalmente da França. Destinavam-se aos saraus da intelectualidade, com
pouco, ou praticamente nada, de uma linguagem nacional, que tivesse muito, ou pelo
menos algo a ver com nosso povo.
Nas ruas, o cidadão comum, o trabalhador, o pequeno
comerciante, o humilde servidor público etc.etc.etc. cantava outras coisas, principalmente
o maxixe. Misturava ritmos – quer europeus, quer africanos –, numa mistura que
parecia incompatível, mas que acabou dando certo, lançando a semente do que
viria a se constituir, alguns anos mais tarde, na genuína música popular
brasileira. Machado de Assis buscava, sim, linguagem artística nacional, e em
todas as artes. Mas suas idéias, refletidas nas letras que compunha, eram elevadas demais, eram eruditas em
demasia, longe, portanto, do alcance do nível cultural do povo.
Ademais, seus parceiros musicais tinham, todos, sem exceção,
formação clássica, notadamente lírica. Muitas de suas composições foram poemas,
compostos não com esse fim, posto que musicados por artistas de grande reputação
nos meios musicais. Nos sons das ruas, porém, predominavam ritmos provenientes
da África. Ou seja, melodias dançantes e sincopadas. Isso tinha lógica óbvia. A
imensa maioria da população do Rio, reitero, era constituída de negros e
mulatos. Por isso, impunha, como seria de se esperar, sua cultura própria, e em
todos os campos de atividade: na fala, na culinária, nos costumes etc.etc.etc.
e... claro, também na música.
Todavia, proposital ou apenas instintivamente, estava em
andamento uma “mistura” entre os vários ritmos africanos com a polca, de origem
austríaca, que havia chegado ao Rio de Janeiro entre 1844 e 1846 e caído, quase
que de imediato, no gosto do carioca, não só da elite, mas de todas as camadas
sociais. Os mais intelectualizados mantinham sua “pureza” original. Já o povão,
misturava-a, em graus variados, mas sempre crescentes de uma composição para
outra, com os vários ritmos trazidos da África. O compasso binário da polca
favorecia tal mistura. E foi dela que resultou o maxixe. Pode-se dizer que este
já constituía “linguagem musical brasileira”. Conservava ainda, é verdade, um
tanto da polca européia, mas cada vez mais difícil de identificar, e
acrescentava outro tanto dos ritmos africanos. O produto era algo que não mais
era nem o que tinha vindo originalmente da Europa e nem o proveniente da
África. Era mistura tão perfeita, que caracterizava um ritmo estritamente novo,
genuinamente brasileiro. Afinal, em nenhum outro lugar do mundo, a não ser o
Brasil, poderia ser ouvido da maneira que ficou: homogeneamente “misturado”.
Não tardou para o maxixe, aos poucos, invadir também os
saraus das famílias mais intelectualizadas (e abastadas), da nossa então
incipiente elite, que se jactavam de sua cultura européia, mas que, no entanto,
se deixavam “contaminar” por aquele ritmo exótico, tão gostoso, tão sensual e
tão contagiante. Estava nascendo, ali, por “geração espontânea”, a lídima
música popular brasileira, tão mestiça quanto era a população do País. Aliás, tão
mulata como era o próprio Machado de Assis. Não consta que nosso maior
escritor, “travestido” de compositor, tenha feito eventual parceria com algum
músico popular e composto letras, por exemplo, de maxixes. Não fez e não
compôs. Isso não quer dizer, porém, que não apreciasse os novos ritmos
“brasileiros” (surgiram vários outros, “ancestrais” do que viria a ser, um dia,
o samba) como ele tanto queria. Provavelmente os apreciava, como todo o mundo e
talvez até trauteasse uma ou outra dessas canções do gênero.
A composição de Machado de Assis que mais se aproxima do que
se pode classificar de “popular”, foi a valsa “Lua da estiva noite”, peça para
canto (óbvio, pois se não fosse, não teria letra), mas com acompanhamento de
flauta e piano. Não se pode dizer que tenha sido “estrondoso” sucesso. Não foi
cantada nas festas das famílias mais pobres (reitero, a imensa maioria) nem
trauteada nas ruas por ninguém. Não se pode, pois, classificá-la, nem forçando
a barra, de “popular”. Mas foi uma de suas composições que mais se aproximou
disso. Seu parceiro foi uma figura de tamanha importância na vida de Machado de
Assis, que merece todo um capítulo a parte: Arthur Napoleão dos Santos.
Esse músico português, excelente pianista, foi quem
acompanhou Carolina Xavier de Novais na viagem do Porto para o Brasil. E esta,
como já é do pleno conhecimento do leitor, viria a ser não somente a esposa,
mas, sobretudo, o grande amor da vida do “Bruxo do Cosme Velho”. Claro que sua
importância extrapola a somente este fato. Arthur foi, além de amigo íntimo e
confidente, parceiro de xadrez de Machado de Assis, outra das grandes paixões
do escritor. Embora de formação erudita, ele teve papel destacado na
divulgação, e, portanto, na consolidação, da nascente música popular
brasileira.
Ao instalar-se no Rio, tornou-se comerciante de instrumentos
musicais e de partituras. Foi proprietário da “Casa Arthur Napoleão &
Companhia”, que atuava, também, como editora. A valsa “Lua da estiva noite” não
só não foi sucesso popular, como é raridade até nos meios acadêmicos. Um dos
versos dessa composição é este:
“Lua da estiva noite
Que surges no horizonte
Vai por além do monte
Cair! cair! cair!”
Como se vê, Machado de Assis, como compositor de letras,
convenhamos, não foi nenhum Vinícius de Moraes, ou Chico Buarque ou algo que se
compare aos grandes nomes da MPB. Por mais genial que um sujeito seja,
dificilmente será notável em tudo o que fizer. Tenho convicção, porém, de que
se destacaria, também, neste campo, caso se dedicasse à música realmente
popular, o que não fez. Uma pena! Claro que isso não diminui em nada sua
importância cultural e, sobretudo, literária, em que foi, ninguém pode negar,
imbatível.
Boa leitura.
O Editor.
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De fato, os versos destacados não causaram em mim nenhum furor.
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