A morte de Paes Leme
* Por
Menotti Del Picchia
Carrão coçou o alto da
cabeça. "Diabo de Keller! Que fazia o coronel que não regressava?" O
filósofo não podia explicar porque tinha o espírito apreensivo. Farejava alguma
complicação para a bandeira e começava a pôr em dúvida sua energia de cabo de
tropa nos grandes momentos. O Keller é que seria o homem indicado para os
momentos de luta. Carrão percebia que ele nascera mais para administrador, para
ecônomo da tropa. Como defenderia a bandeira no caso de um ataque? Como
distribuiria os combatentes? A mata já era um cárcere verde, aprisionando seus
homens; sua gente estava encurralada entre troncos como uma boiada numa
mangueira. Teve a impressão - seria impressão apenas? de que sua gente marchava
mais taciturna. A sombra da floresta, uma sombra esverdeada, uma espécie de
crepúsculo funéreo, reagia nos nervos do pessoal de maneira deprimente! Urgia
safar-se dali; encontrar um descampado. O caminho, porém, era aberto a muito
custo; o trecho era de uma violência vegetal bárbara e primária. Os botas-de-
couro tropeçavam nas paliçadas das raízes e nas agressivas tranqueiras dos
unha-de-gato.
Carrão ficou reflexivo.
Veio-lhe à memória a luzinha vermelha do estúdio, o homem do trombone, as ancas
saltarinas da sambista. Lá era fácil falar no arrojo dos mateiros, esmagando,
com as sapatorras de couro cru, o peito peludo do sertão. A imagem literária é
uma festa verbal. A realidade era outra coisa: era o que estava ali, uma
floresta hirsuta barrando o esforço de cem homens com um simples guarantã ou um
pau-d’alho. Contra tais massas inútil era o pequenino e lerdo gume dos
machados. Desbastar florestas inteiras através de um microfone era mais fácil e
rápido que derrubar o estipe mole de um só palmito...
"Por que é que eu
me meti nisto?" foi o grito ansioso do seu subconsciente. "Que é
subconsciente?", indagou por hábito o filósofo que morava em Carrão.
"O subconsciente é o instinto da espécie em função de perpétua legítima
defesa. É a alerta sentinela da vida..." Gostou da própria réplica e
procurou fixar na memória esse pensamento nítido, lógico, irrespondível para reproduzi-lo
nas suas "Notas filosóficas", uma caderneta besuntada na qual, à
maneira do Marquês de Maricá, garatujara uma série de lugares-comuns. Mas de
novo brilhou no seu espírito a lâmpada vermelha; era ela como um semáforo
gritando por perigo. Lá estava o homem do trombone arrancando, com o pé, no
silêncio do broadcasting, um ruído surdo de bombo. Agora sentia-se ridículo por
aquela curiosidade ofegante que antecipara seu futuro heroísmo. Não! Ele não
merecia o gesto de emoção da sambista, do speaker e do homem do trombone. Eles
o haviam admirado a crédito. Agora que era a hora de mostrar seu valor, Carrão
hesitava e tremia. "Que é que vim fazer aqui? Por que me meti nesta
rascada?" eram as perguntas tardias e inúteis do seu instinto.
Lembrou-se, então, das
suas tiradas retóricas na noite da irradiação: "Raposo, Borba Gato,
Anhangüera, Pais Leme!..." A teoria dos heróis mateiros desfilou ali,
nessa mesma floresta que os pés desses homens haviam pisado. Mediu, então, as
proporções da façanha. Agora que podia "compreendê-la e senti-la"
entrou no sentido real, positivo e humano do feito. Foi tão funda a emoção que
lhe causou a evocação da arrancada daqueles heróis sem medo, que iam, na
madrugada da pátria, atroando seu dilúculo matinal com o ruído da sua marcha,
que Carrão se sentou numa raiz para poder reviver e reverenciar com o
pensamento a memória de tal gente.
Lá estava Pais Lemie
tiritando de febre... Aonde? Ali, ao pé daquela gameleira. Os mesmos mosquitos
que zunem em torno do toutiço de Carrão, e que ele espanta impaciente, querem
chupar o sangue envenenado do bandeirante. A pele que se lhe entrevê através
dos tufos da barba e do cabelo comprido, empastado na fronte pelo suor da
morte, é terrosa, como a de um cadáver. Escorre-lhe do canto do olho uma lágrima,
não de angústia, mas de agonia. A febre faz tamborilar a artéria do seu pulso,
como se a morte estivesse batendo ali para entrar nessa carcaça que a marcha e
o cansaço reduziram a um saco de osso. Delira. Tem nas mãos a sacola de couro
com as esmeraldas. Carrão reprime a custo a vontade de chorar. Pela primeira
vez aquele drama saía das estrofes de um poema, do palanfrório de um discurso,
de um mármore frio e descia à vida, real e brutal, misturando terra e lama no
calção de couro, umedecendo de pranto a máscara desesperada de um herói. Não é
o Pais Leme da epopéia. É um homem que morre. Tudo simples e tremendo. Não há
em seu redor lirismo nem eloqüência: há a realidade de uma solidão
irremediável, sem conforto, sem esperança humana de socorro. Veio de longe,
tropeçando, no gasto final de um resto de forças. Tombou junto daquela raiz e
não pôde andar mais... Fim de jornada que é também fim de uma vida. Subiu
morros, desceu escarpas, vadeou rios, furou florestas, e caiu; músculos
frouxos, cabeça virando, zunindo, artérias a ferver com milhões e milhões de
germes mortais transformando em peçonha seu sangue. Está aí... Sua boca se
abre, desgovernada, balbuciando coisas sem nexo, dizendo ao silêncio que o
levará ao túmulo, as visões do seu delírio... As esmeraldas, como pedregulhos,
fazem um rumor áspero na sacola. São míseras turmalinas. Nem a glória de uma
descoberta, apenas o calvário de um sacrifício...
Carrão está assombrado.
É tão forte a impressão do filósofo que ele vê nitidamente o mateiro moribundo.
Tem ímpetos humanos de confortar o homem que não teve conforto. Como tudo isso
está longe da literatura, como se destaca da imprecisão da lenda para se tornar
um episódio tragicamente banal: o drama do homem que morre! Carrão humaniza
essa agonia porque ele está no cenário do herói, junto do seu leito de morte
feito de pedras, formigas, folhas e gravetos.
Carrão levantou-se.
Passou a mão pela testa. Limpou o suor que a molhava. Não pôde mais suportar a
brutalidade da cena.
Meu Deus, como fui
besta!
Sentiu um arrepio de
vergonha ao pensar na alegria que tivera quando, de junto do microfone, vira a
admiração que gritava nos olhos gateados da sambista.
Simplesmente besta...
Besta e ridículo...
O espírito da humildade
fez com que tudo nele se encolhesse, se tornasse pequenino, desprezável. Tomou
uma heróica resolução: procuraria estar à altura das circunstâncias. Afinal,
aqueles homens estavam entregues ao seu comando. "Aquele diabo do
Keller..." Deu um tropeção no Manequinho que roncava, espapaçado no chão, ao
lado do austríaco. Aquela displicência encheu o filósofo de furor.
Levanta; vagabundo!
(Kummunka, 1938.)
*
Escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
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