quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Talento e exercício

* Por Pedro J. Bondaczuk

O talento, sozinho, não basta para fazer de uma pessoa um artista admirado e de sucesso, um desportista vencedor ou um profissional reconhecido e disputado pelo mercado. Claro que ele ajuda, mas requer algo tão importante, ou mais, do que sua mera e potencial habilidade para qualquer atividade: o exercício.

Artistas, desportistas e profissionais são frutos de horas e mais horas de estudos, de treinamentos, de dedicação integral ao que fazem ou querem fazer. Alguns especialistas sugerem que 10 mil horas de exercício habilitam o sujeito talentoso para conseguir o que almeja. Não sei se de fato é possível mensurar esse treinamento necessário.

Pode ser que para alguns, as horas despendidas na preparação sejam menos do que isso e, para outros, bem mais. Fiquemos, porém, com as dez mil horas como ponto de partida, apenas como premissa para reflexão. A verdade é que, sem essa dedicação integral ao que se escolheu para fazer, o fracasso e a frustração são previsíveis, se não fatais. Não basta a genialidade se a pessoa não a exercitar. E quanto antes começar a se preparar, mais cedo conseguirá fazer aquilo a que se propôs.

O editor-chefe da revista “Skeptyc”, Michael Shermer, fez as seguintes observações a respeito (com as quais concordo), em entrevista publicada em 14 de setembro de 2001, no caderno “Mais!” do jornal Folha de S. Paulo: “Essa é a questão das 10 mil horas. O que é preciso para ser um gênio criativo e alcançar o topo de sua área? Primeiro de tudo, há uma regra das 10 mil horas mínimas. Se você quer dominar um esporte ou uma habilidade, isso vem com 60 horas por semana durante três anos e meio. Isso é verdade em todas as profissões. Não significa que você vai conseguir. Boa biologia e genes ajudam. Mas olhe Mozart. Ele não surgiu do nada como algumas pessoas pensam. Ele teve o pai e o treinamento e fez as 10 mil horas aos 6 anos. Devoção precoce ajuda o gênio a sair”.

Alguém pode perguntar: “E a inspiração, onde entra nessa história toda?”. Antes de tudo, é necessário que se defina o que se entende como tal. Há pessoas que acham possível surgir do nada, como num toque de mágica, uma obra prontinha no cérebro de alguém, bastando, apenas, reproduzi-la. Ah, como seria bom se as coisas fossem assim tão simples e se tivéssemos, com freqüência, esses súbitos “lampejos”!

O que chamamos de “inspiração” são idéias que um dia tivemos, às vezes sem sequer nos darmos conta, e que ficaram adormecidas, sabe-se lá por quanto tempo, em algum substrato da nossa mente, talvez no subconsciente ou, quem sabe, no inconsciente. Para que as tivéssemos, no entanto, foi indispensável que lêssemos, víssemos ou ouvíssemos em algum lugar referências básicas sobre esses assuntos.

Às vezes, esses lampejos surgem depois de anos, de décadas até. Podem, também, é verdade, emergir à consciência já no dia seguinte. Nosso cérebro é um mistério até para os maiores especialistas na matéria. Não raro, porém, essas idéias “brilhantes” que um dia tivemos, e não nos demos conta (ou lhes atribuímos pouca importância), não voltam nunca mais ao consciente. Perdemos, assim, a oportunidade de produzir uma grande obra, quem sabe a mais relevante de nossas vidas.

Ademais, a tal da inspiração quase sempre se refere, apenas, ao tema para ser trabalhado, cabendo-nos a árdua tarefa de tratar do conteúdo. Ou então, se tratam de meros “pedaços” de uma obra (um conjunto esparso de notas musicais, por exemplo, ou determinada nuance de luz e sombra de uma pintura, ou um verso de um poema, não importa). Ela não é tão benigna quanto os ingênuos supõem. Não nos entrega, de bandeja, nenhum “Lusíadas”, ou a “Quinta Sinfonia”, ou “Os Girassóis” de Van Gogh prontinhos e acabados.

Volta-se, pois, às questões do talento e do exercício. Se você não tiver aptidão para a música e não dominar a técnica de composição, de nada lhe valerá a inspiração para compor uma canção (e, creia, essa não virá mesmo). O mesmo vale para a pintura, escultura, literatura, futebol, atletismo, finanças, direito, medicina etc.etc.etc. Se não houver se exercitado naquilo que gosta de fazer, não o fará nunca. Não, pelo menos, com a competência e a segurança requeridas para ser expert na matéria.     

Portanto, não se iluda com essa história de “inspiração”. Se o fizer, com certeza o resultado será uma profunda frustração, acompanhada de interminável séqüito de outros tantos sentimentos negativos. Descubra seu talento. Exercite-o, não apenas por dez mil horas, mas por toda a vida. Fazendo isso, nunca lhe faltará inspiração, eu lhe asseguro. Aja assim, você que ainda é um “artista (ou profissional) enrustido” e lhe desejarei, do fundo do coração, uma “boa obra”!

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk  


Um comentário:

  1. Amanhã no Ecambo de Livros deverei falar sobre "escrever". É como você disse: "amar se aprende amando". E escrever escrevendo.

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