João Mamulengo é nome de boa música
* Por
Mara Narciso
Ouvi a música duas
vezes na Rádio Unimontes no Programa Nossa Arte Nossa Gente, que mostra canções
que não tocam na grande mídia e dá oportunidade a toda gente. Trata-se de uma
composição que disputou o Festival de Música Fenae 2008 Apcef, Colatina, ES, e
que foi classificada em segundo lugar. A sua letra foi considerada a melhor
delas. Feita por Dimas Deptulisk que a canta junto com Efrahim Maia, entrou
pelo meu ouvido, avançando alma adentro, seduziu, emocionou e acabou tirando-me
lágrimas. Aconteceu como a flauta de Hamelin. Fui seguindo os seus acordes e
acabei conduzida à dura realidade de um João Ninguém, o João Mamulengo,
solitário, morador de rua, bêbado compositor, ou compositor bêbado, que se
inspirava na Bíblia para fazer versos. Ainda ontem, já chegou à praça “meio
tomado, prenhe de cachaça”, levava nas mãos um litro e um livro. Sentou-se no
banco da praça e começou a compor.
Mas a vida de João
nunca tinha sido leve. Trazia uma imensa carga, pois, sendo escória do mundo,
carregava todos os lixos, todas as infâmias e misérias da existência. Não teve
escolha. Era carregar e muito ainda carregar, e esses lixos lhe eram jogados
pelos olhares de desdém dos passantes. Assim “nas costas a carga, do lixo do
mundo”. Mais abandonado que um cão sem dono, esse homem perdido tem alma, e esta
alma tem fundo, para sofrer e se perder a cada dia mais no mundo. “Mundo,
mundo, vasto mundo, e se eu me chamasse Raimundo? Seria uma rima, e não uma
solução” (Drummond).
A vida de João
Mamulengo é uma desafinação só, do começo ao fim, e seu violão acompanha sua
sina, de corda quebrada, empenado, desafinado. Como fazer composições em
situação tão adversa? Mas João Mamulengo segue fazendo, e nem sabe o porquê.
Ajudado pela cachaça e pela Bíblia, vai catando e criando versos, retirados lá
de dentro das suas dores históricas. Vida de morador de rua, quem quer saber
dela? Nem olhar, muito menos sentir-lhe os odores. Medo de “pegar” a triste
sina.
Na má sorte não se está
acompanhado. É imperativo estar só. O peso do mundo dobra as suas costas, e
João está encurvado. Grávido que estava
ao chegar, cheio de ideias, prenhe de versos e de cachaça, vê seu parto
acontecer. “Fazendo sozinho seu parto na praça, um bicho parindo na solidão”.
Mas não tem alegria seu soneto, e nem poderia. As dores da vida não lhe
favoreceram o talento e os versos são sem graça.
Sem forças, João sabe
que esta será sua última música. Vai compondo, tirando palavras do livro,
tocando seu violão claudicante, empenado, poucas cordas. E sem energia, João
“menino perdido na multidão”, vai se encurvando mais e mais, vai ficando
parado, calado, torna-se pálido, está morto. Morreu deixando uma música
inédita. Ninguém sabe como seria esta sua última obra.
O que a música de João
Mamulengo mais faz, é machucar quem ouve seus lamentos, porque quem a escuta
sabe que em muitas esquinas há homens grávidos de vontade e sem oportunidade de
colocá-la em prática. A melodia é má, pois maltrata e faz chorar. É algo que,
ao se ouvir, não se consegue passar incólume. Eu não passei. Corri pela
internet e trouxe um pouquinho do que senti ao ouvir essa dramática canção. Sua
letra está abaixo e a sua melodia no Youtube. Espero que gostem, porque eu
gostei.
“Ainda
ontem vi João
Sentado
no banco da praça
Tava
prenhe de cachaça
Levava
uma Bíblia
E
um litro na mão
Nas
costas a carga
Do
lixo do mundo
No
fundo da alma
O
abandono de um cão
Menino
perdido
Na
multidão
Eh!
João
O
violão do mundo/ tá desafinado
Tá
faltando corda
Tá
todo empenado
E
João Mamulengo
Ali
parado
Vem
ver João
Com
a espinha curvada
Bebendo
cachaça
Fazendo
sozinho
Seu
parto na praça
Um
bicho parindo
Na
solidão
Vem
ver João
Tirando
do livro
Um
soneto sem graça
Compondo
na praça
A
última canção
Eh!
João
O
violão do mundo tá desafinado
Tá
faltando corda
Tá
todo empenado
E
João Mamulengo
Ali
parado
Menino
perdido
Na
multidão
Um
bicho parindo
Na
solidão
Curvado,
ali, parado
Pálido,
ali, parado
Morto,
ali, parado
E
João Mamulengo
Calado”.
Vejam no link: http://www.youtube.com/watch?v=4PqbY_IEeMs
*Médica endocrinologista,
jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto
Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Que figura, esse João Mamulengo. E que retrato bem feito, Mara. Vou chover no molhado e, de novo, dar meus parabéns por mais este.
ResponderExcluirQuando pensei em conhecer João Mamulengo ele já não existia mais. Estamos quase sempre atrasados nas nossas vontades de fazer justiça. Obrigada, Marcelo.
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