Álbum de figurinhas
* Por
Adair Dittrich
Ainda flanando o
pensamento, ainda com a mente coalhada de reflexos do futebol e das lembranças
das primeiras copas do mundo, outras histórias vão chegando. Como eu as vi,
como eu as senti, como eu as aplaudi, como chorei de desilusão e como chorei de
emoção.
Volto ao mais antigo
tempo de que me lembro quando a copa começou a ser ouvida pelas ondas do rádio.
Com locutores esportivos contando como estavam os jogos.
Um tanto quanto
obnubilada é a lembrança da copa de mil e novecentos e trinta e oito. Mas,
lembro-me bem da chegada do rádio em nossa casa. De sua instalação. Aqueles
mastros de madeira pregados no alto mais alto da cumeeira da casa tentando
invadir os céus e alcançar as nuvens com fios que se estendiam entre eles e
desciam para dentro da casa e se articulavam com aquele novo móvel ali
instalado, aquele móvel que falava. Não lembro se me explicaram que a toda
aquela parafernália dava-se o nome de antena. E em pouco tempo a nossa pequena
vila estaria com os céus coalhados por elas.
Mas do que eu me
lembro, e muito, era que eu procurava, até atrás da parede, no quarto contíguo
onde estava o rádio, por um homem e por uma mulher que não paravam de falar e
de cantar e tocar instrumentos musicais…
Sei, porém, que quando
a terceira copa chegou, as coisas lá em casa estavam bem mais animadas com o
Rádio contando como estavam decorrendo os jogos. Não sei se era voz direta…
creio que não. Eram notícias que chegavam pelo telégrafo e eram retransmitidas.
Lembro que os locutores e as locutoras do rádio tinham uma voz vibrante,
nítida, empolgante. Nem se compara com estas vozes medíocres que hoje se ouve
pelas emissoras de tevês. Esquecem-se que precisamos ouvir bem o que se fala.
Esquecem-se que existem clínicas de Fonoaudiologia para aperfeiçoamento da voz.
Mas não é disto que eu quero falar agora.
Toda a sessão de cinema
também tinha como abertura um cine-jornal que entre as demais notícias do
Brasil e do mundo mostrava também o que acontecia nos campos de futebol. E
víamos então o jogo em movimento. A dança, o balé em busca de uma bola que pelo
rádio se via apenas pela imaginação. E como se via pela imaginação, pela
narração rápida, completa e total.
E ainda tínhamos os
jornais e as revistas que chegavam pelo trem, em Marcílio Dias, e que vinham
recheadas com fotos e notícias sobre o chamado esporte bretão, o chamado
esporte das multidões.
Meus irmãos Avany e
Aldo sempre a par das conquistas, dos feitos, dos gols e dos dribles dos nossos
grandes nomes da época, tentavam confeccionar, a duras penas, um álbum dos
jogadores.
Não era um álbum de
figurinhas, assim fácil, como esses que mais tarde apareceram e que é só
comprar, procurar e montar, não.
As figuras, as fotos
eram, com tesoura, recortadas dos jornais e das revistas e coladas depois em
cadernos com cola de farinha de trigo por eles fabricada em fogão de lenha.
Morávamos na mesma casa
com Nono Pedro e Nona Tereza Gobbi. E, na hora em que o trem chegava todo mundo
descia até o Restaurante ao lado da estação do trem que era para ajudar e
depois reunir-se à mesa para as refeições.
Depois da Copa de
trinta e oito recebemos a visita de um primo de minha mãe a quem chamávamos de
tio. Primo almofadinha que morava em São Paulo onde aprendera as artes e os
ofícios de Confeitaria. E abominava o futebol.
Meus irmãos achavam que
já tinham recortado dos jornais e revistas todas as figuras que lhes
interessavam para montar um grande álbum com os jogadores. E as deixaram
coladas nas folhas dos cadernos espalhadas pelas mesas da cozinha, da copa e da
sala de jantar para que a cola secasse. E desceram para o restaurante porque
era a hora do trem chegar. Ofício acabado na azáfama da hora voltaram para casa
com a intenção de montar, folha por folha, o álbum.
E o que encontraram?
Mesas vazias.
Procuraram no lixo, nos
fundos da casa, nos ranchos. Procuraram nas cinzas e nas cinzas nem resquícios
encontraram.
Foram falar com Nona
Tereza que de nada sabia e até ajudou a procurar. Quem sabe o vento as levara.
E nada.
No fim, até a Nona
chorava com eles porque ela sabia o quanto havia custado para conseguir e
juntar e classificar todas as figuras para aquela coleção. Coleção classificada
por times e por seleções de países.
Ela sabia que o
“foguino”, que era o Aldo, durante todas as férias trabalhara de carregador de malas
para os passageiros dos trens a fim de arranjar o dinheiro para a compra dos
jornais e das revistas. E agora tudo desandara. Só a frustração permanecia.
E só poderia haver um
culpado. Que não era o mordomo. Que deveria ser o primo-confeiteiro. Que, claro,
a tudo negou.
O primo almofadinha
tinha vindo para ficar mais tempo em Marcílio Dias e, talvez, até colocar sua
arte a serviço do restaurante.
Mas, no dia seguinte,
da janela de um vagão de primeira classe do trem das onze que seguia para
Curitiba, o primo acenava dando adeus a todos sem ter antes sequer se despedido
da família.
Só a Nona Tereza sabia
o porquê.
*
Médica
Nenhum comentário:
Postar um comentário