Enchente no final do
inverno
* Por Urda Alice Klueger
(
Para Eduardo Venera dos
Santos Filho)
A enchente chegou, nascida da chuva dos dias e das noites. A enchente
chegou e foi aumentando e foi subindo e foi tomando conta da cidade. A enchente
chegou e você não estava.
Lá no morro ela não ia, não subia, não tomava conta. Mas a enchente
tinha o poder de isolar – e você não estava.
Ela começou nos lugares mais baixos; depois entrou nas ruas; depois
fechou as ruas. Penetrou pelos subterrâneos onde correm os fios de comunicação
e os telefones deixaram de funcionar. Lá no morro ela não ia, mas a chuva caía
lá também. Caía sempre, de dia e de noite, e escorria pelos gramados, pelos
paralelepípedos, para se juntar, lá embaixo, com a enchente que crescia. Vinha
na forma de algodão branco, pelas pontas dos outros morros ao redor, e se
desfazia em lençóis d’ água sem cor que caíam sempre, inexoráveis e tristes,
entristecendo o amanhecer, o meio dia, a tarde inteira, entristecendo pela
noite afora.A chuva desfazia em nada os perfumes da semana anterior: o perfume
denso e doce das laranjeiras floridas, o quente e doce das primeiras ameixas
maduras sob o sol. Ela simplesmente chegara e mandara embora aquele indefinível
prelúdio de primavera.
Lá do morro a gente via a cidade cada vez mais se parecendo com um
presépio disposto sobre a superfície de um espelho. Cada vez mais a água nivelava
os desníveis do solo e aguçava os da tristeza – pois você não estava.
Os sons da cidade eram distantes e não chegavam lá em cima, mas a gente
sabia que ela se tornara em silêncio. Ali mais perto, ali quase na base do
morro, por dias e semanas a fanfarra do colégio havia enchido as tardes da
marcialidade do som que tornaria grandioso o sete de setembro, mas a chuva e a
enchente haviam ignorado o clamor da fanfarra e dos espíritos que se preparavam
para a festa e simplesmente calara tudo.
No morro só havia o isolamento e a tristeza da água que caía. A gente
podia ligar o rádio, mas todas as emissoras estavam num plantão permanente
devido à enchente e só se ouviam boletins sobre os níveis do rio pelo vale
afora, ou instruções e apelos à população. A televisão fornecia desenhos
animados onde Scooby Doo enfrentava fantasmas incríveis, surgidos de lugares
mais incríveis ainda, e que não conseguiam dissipar tristeza nenhuma. Ouvir
música se tornava em tortura – cada nota me falava que você não estava.O telefone
já não era telefone – tinha passado a ser um objeto tilintante, parecendo
querer anunciar com o som contínuo e desordenado da sua campainha que se
tornara impotente e que já não tinha poder para ajudar mais ninguém a se
comunicar. E, meu Deus, como eu queria poder usar do telefone para dissipar as
trevas com a magia da sua voz – mas nem a sua voz era possível ouvir.
Você não estava e não era possível fazer nada. Então eu escrevia para
você, datilografava folhas e mais folhas, escrevi em folhas de caderno, de
blocos, em qualquer pedaço de papel, com hidrográficas, com lápis, com qualquer
tipo de caneta – a estética não tinha importância, o importante era escrever e
saber que estava escrevendo para você, embora não soubesse quando a enchente
iria embora e seria possível ir até o correio de novo. Contava para você da
tristeza da chuva, que viera se juntar à angústia da sua ausência, contava para
você da apatia gelada de olhar o espelho das águas lá embaixo e de saber que
você não estava. Falava do frio que entrava de mansinho por baixo da porta e
que enregelava as mãos e os pés; falava da trizteza das flores lá fora, que se
tinham curvado e estavam se desmanchando pelo excesso de chuva. Dizia-lhe do
isolamento do morro, de onde não era possível sair, dos cigarros que tinham
acabado sem que fosse possível conseguir outros, da minha alma que se sentia
dilacerada e vertia sangue, reclamando por você. Contava-lhe de cada instante,
de cada pensamento, de cada gota de chuva, procurava fugir da realidade
escrevendo – mas ela continuava presente, me falando o tempo todo da sua
ausência.
A enchente, a enchente, a chuva, a chuva, Deus, meu Deus, por que é que
alguma coisa não mudava? De que adiantava a grandiosidade de Beethoven se eu
não podia ouvir a melodia divina da sua voz? Poderia dormir, fugir do tempo e
da distância dormindo, mas no sono não encontrava descanso – apenas conseguia
entrar num estado de letargia, onde me sentia dilacerar mais e mais, porque
ficava sozinha comigo mesma, porque no sono não havia o refúgio do estar
escrevendo, porque no sono havia o seu sorriso, as suas palavras, havia você, e
doía mais ainda porque eu sabia que você não estava.
Numa madrugada chegou o terral, trazendo muito frio e dispersando a
chuva, que fugiu, sumiu, desapareceu. Mas a enchente não foi embora com as
nuvens que migravam, nem se assustou com o brilho do sol. Ela continuava lá,
plena e serena, cortando o telefone, as ruas, as estradas. E você não estava,
NÃO ESTAVA!
A angústia me intoxicara o corpo, passara a ser física, e a enchente
continuava lá embaixo. O frio intenso que o terral trouxera parecia um
disparate diante da profundidade do azul do céu, diante da grandiosidade
luminosa do sol, e o tempo passava sem que eu soubesse de você.
Meu Deus, quanto tempo já se tinha passado? Seria possível que os dias
de isolamento não haviam chegado a perfazer uma semana, quando me pareciam ter
durado um ano inteiro? O que estaria acontecendo com você, o que estaria
acontecendo com você?
Eu olhava para baixo e não tinha nenhum instante de paz. O meu corpo
todo doía de angústia. Olhava para baixo e não via nenhuma diferença na
enchente. Mas embora a minha ansiedade não me permitisse ver a descida lenta
das águas, as ruas estavam voltando à tona, as casas estavam emergindo, as
árvores deixavam de serem arbustos. O rio carcereiro ansiava pela paz do seu
leito antigo e amigo.
E antes que as outras comunicações se restabelecessem, o telefone tocou.
Você estava de novo, embora houvesse muitas centenas de quilômetros a separar
nossos corpos.
Tudo simplesmente foi apagado: a enchente, a tristeza, a angústia, toda
a dor.
Você estava de novo. Era o quanto bastava. Sabia que agora a primavera
voltaria, sabia que agora os tambores voltariam a preludiar o sete de setembro,
tornariam a encher as tardes de som. Era o quanto bastava.
Você estava de novo!
(Escrito e vivido em 1972)
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
Momento forte, mas que teria pedaços esquecidos, não fosse a memória do texto. As águas inundam, como o grande amor que sentia então, Urda.
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