Em memória de Seu João
* Por Marco Albertim
- É uma avenida, mas é escura. Não há
como você seja visto entrando na casa.
- E a vizinhança?
- A vizinhança entretém-se na novela,
esquece até de ladrões porque tem um casal de cães pastores em casa.
- Tem cachorros?!
- Sim, mas ficam trancados nos fundos
da casa. Tarde da noite é que abrem a grade da jaula.
Os passos de Bartírio pisaram sem
escrúpulos o chão úmido, sem calçada, na frente das casas de muro alto. Quando
virou a esquina e entrou à esquerda, o único poste da avenida, com luz
fluorescente, iluminou-o de cima a baixo, pondo a nu seu rosto de caeté com
barba rala, a camisa verde de fustão ordinário e a calça de brim azul-escuro.
Não tinha nas sobrancelhas, no bigode ralo, fios de algodão soltos pelo tear,
inda que se orgulhasse de sua aparência de operário tecelão. O negror mortiço
da pele, os trajes de tecelão logo sumiram no negrume à frente do matagal. Os
seus passos, pisando com força o chão molhado, desatavam guinchos tão agudos
quanto a estridência dos insetos no capinzal.
No meio do quarteirão, subiu o degrau
de cimento, mais outro e se viu junto ao portão de ferro de acesso ao jardim da
casa; no portão não havia cadeado no único ferrolho, e sua altura, junto a
Bartírio, não excedia a cintura de Bartírio. Caminhou, agora com escrúpulos, no
estreito e curto acesso cimentado rumo a outro portão de ferro, com basculantes
do meio para cima. A porta de entrada da casa de Olívio. Abriu-a com a chave
que lhe fora dada; a fechadura rangeu seca, indiferente à umidade do tempo.
Atravessou o terraço, abriu uma fechadura de uma porta de madeira; ouviu um
estalido maior, mas sossegou-se porque fechara o portão de ferro, abafando os
cálculos de seu juízo sôfrego. Na casa pequena, de dois cômodos e uma sala, um
cômodo de cada lado, não seria difícil, tateando, descobrir o interruptor. Não
o incomodou o cheiro abafado de mofo, visto que também ele, Bartírio, morava
num quarto de pensão cuja criada, com tenção mundana, esquecia sempre de fazer
a limpeza. Para assegurar-se de que cumpria a tarefa com aprumo, pôs a mão na
parede; a direita, posto que não havia embaraços dos quais devia
desvencilhar-se. Tocou no interruptor, esticou o dedo indicador e acendeu a luz
da sala; logo desligou-a, não sem ouvir uma estridência de vozes e distinguir
os rostos atônitos dos camaradas que lhe recomendaram não acender sequer um
toco de vela. De volta ao escuro, pôs as duas mãos no rosto, como para fazer
uma autocrítica com arremedos de mea culpa. Os olhos fechados distinguiram, com
azougue nas pupilas, o rosto redondo e pasmo de Olívio. O efeito da autocrítica
desjeitosa proveu-o de fumos de disciplina. Virou à direita, entrevendo um
lusco-fusco de portas e paredes, entrou no cômodo i ndicado por Olívio.
Sentindo-se dentro, deu as costas para a janela de frente da casa; tirou do
bolso a lanterna minúscula que fora autorizado a usar, e acendeu-a com a palma
da outra mão encobrindo a luz; viu o armário verde com prateleiras
envidraçadas; dentro, os livros de Olívio, as lombadas dando conta de uma
mestiçagem de ideias em função das diferenças entre um autor e outro. Abaixou a
luz e viu a maçaneta da primeira gaveta abaixo das prateleiras; deparou com uma
pasta marrom, sem alça; abriu-a e sopesou com os dedos o monte de documentos
escritos à máquina. Pôs a pasta debaixo do braço e fez o caminho de volta,
sorvendo a vida desprendida pela sinfonia dos insetos no matagal.
Acendera a luz, pensou, mas se a
polícia invadisse a casa não poria as mãos no maço de pregações escritas com
ódio aos militares no poder.
Reencontrou com Olívio em frente ao
cinema de Água Fria. Sexta-feira. A fila para a compra de ingressos, rala, mas
a eletrola de fichas, uma Wurlitzer ruidosa, dava conta de uma sofreguidão de
vida no mortiço da noite. A Wurlitzer e o ajuntamento de feirantes em frente ao
mercado público, Bartírio e Olívio espreitaram-nos com familiaridade nos olhos,
indiferentes à conversa miúda de policiais militares numa viatura, entre o
cinema e o mercado.
- Há um abrigo melhor – advertiu
Olívio. – Vamos para o bar de Seu João.
Seguiram para as entranhas do bairro.
Seu João, com o rosto tão vermelho
quanto as ideias, cabelos brancos estirados, amarrados atrás, guardou a pasta.
De volta, serviu a cada um uma cachaça. Borrifou nos copos minúsculos um
líquido vermelho, á base de açafrão e tomate espremido. Curvou-se e
sussurrou-lhes:
-É o sangue do proletariado que breve será vertido na revolução.
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem
três livros de contos e um romance.
Na ilegalidade, todo cuidado é pouco. A ditadura passou e as ideias tornaram-se confusas, mofadas. Fidelizar-se à causa socialista na juventude é fácil, difícil é arrumar argumentos convincentes para permanecer nela depois que as décadas avançam, e o que era não é mais. Nostalgia do tempo em que as convicções eram mais firmes, como dos personagens acima que arriscavam a vida por um sonho. Admiro-lhes a coragem.
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