terça-feira, 6 de abril de 2010




Riacho das Acácias

* Por Risomar Fasanaro

Era ainda muito cedo em Riacho das Acácias. O sol mal havia saído, e o branco do dia se misturava com o da plantação de algodão, quando eles chegaram.

A mulher aparentava uns 45 anos e era muito bonita; estava com um rapazinho que não teria mais de dezessete. Embora muito jovem, era daqueles rapazes que quando chegam a algum lugar chamam a atenção de todas as mulheres. Os dois traziam apenas dois sacos de pano com seus guardados, e procuravam um lugar para se instalar.

Ali só havia a pensão de João Sem Medo, com três quartos, e que naquela lonjura onde tão poucos se hospedavam, sempre havia vagas. Eu estava saindo para colher algodão quando os vi chegando à cidade. Cidade é exagero meu, Riacho naquele tempo não passava de um pequeno lugarejo, uma vila, bem diferente do que é hoje. Umas poucas casas perto do centro, onde havia apenas a igreja, a escola, a venda do seu Alderico, e o hotel de João.

Os dois tinham aparência de cansaço, e me pareceram também um pouco assustados, desconfiados. A princípio pensei tratar-se de mãe e filho, mas quando me perguntaram se sabia de algum lugar onde pudessem se hospedar, acompanhei-os até a pensão, e ouvi quando pediram um quarto de casal. Escondi meu espanto, me despedi e fui pra roça.

Dois dias depois arranjaram uma casinha e foram morar no lugar mais retirado de Riacho, perto da mata que cercava o município. Ali, onde quase nada acontecia, se tornaram o centro dos mexericos. Não havia um filho de Deus que não comentasse, não inventasse uma história sobre o casal.

Eles não tinham nem cama, nem mesa, nem nada. Apenas um bule, duas canecas de alumínio, dois pratos e alguns talheres. Um cobertor estava estendido no chão, e deduzi que ali dormiam. Sei disso porque mãe me mandou ir à casa deles ver se precisavam de alguma coisa. Não, não precisavam, e me receberam com tantos silêncios, que nunca mais voltei.

Quando vinham até a venda não conversavam com ninguém. Tinham o ar de quem está sempre de sobreaviso, com medo de ser descoberto. E aquele jeito arredio dos dois levantava mais e mais suspeitas.

Teria a mulher seduzido e seqüestrado aquele garoto? Teria ele se apaixonado por ela a ponto de convencê-la a fugir com ele? Ninguém nunca soube. A verdadeira história daquele casal jamais se desvendou.

No ano seguinte os dois se dedicaram a um trabalho na igreja, fizeram amizade com o padre e com algumas pessoas do lugar. Casaram-se, mas nunca revelaram nada que se relacionasse à sua intimidade.

As moças não paravam de comentar a beleza do rapaz, e a estranheza que provocava a enorme diferença de idade. Fosse o inverso, naquela terra onde os “coronéis” costumavam se amigar com mocinhas com idade das filhas e não raras vezes das netas, ninguém estranharia, mas naquele caso...

A verdade é que pareciam formar um casal feliz. Olibiano sequer se dava conta da atração que exercia sobre as moças do lugar, e nunca se envolveu com nenhuma delas. Era todo carinho com a mulher. Pareciam eternos apaixonados.

Acontece que algum tempo depois ele começou a envelhecer. E logo, logo a diferença de idade parecia ser muito pequena. Aquilo causava estranheza a toda gente, menos à Corália, sua mulher. Ela parecia não se dar conta do que acontecia com o marido, que aos poucos ia perdendo o brilho dos olhos, o viço da pele, o encanto dos primeiros tempos. Agora andava curvado, com passos de um ancião...

Como preparava beberagens com ervas que plantava no fundo do quintal, começaram a comentar que ela era bruxa, e que com suas bruxarias havia roubado a juventude do rapaz. Diziam que realizava rituais na mata em noites de lua cheia, se verdade, se mentira, ninguém nunca comprovou.

A verdade é que Olibiano se tornara em poucos anos um homem muito idoso. Um velho. Tão velho que passaria por pai dela.

Há mistérios no mundo e na vida que jamais iremos compreender.

Enquanto isso Corália não aparentava mais de cinqüenta anos. O corpo continuava o mesmo, e no rosto as poucas rugas não lhe toldavam a beleza.

A última vez que os vi já nada restava daquele rapaz que eu vira naquela manhã em que chegaram a Cachoeira. Só reconheci aquele homem que aparentava mais de oitenta anos por estar de mãos dadas com ela, a mulher, tão moça que parecia ser sua filha.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

5 comentários:

  1. Energias podem ser drenadas.
    Muitas vezes nos permitimos
    e nos submetemos.
    Bruxa? Não sei.
    Fica o mistério de um enredo
    intrigante e que nos prende.
    Adorei Riso.
    beijos

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  2. Realmente, Criou-se um enredo incrível despertando curiosidade, envolvendo todo povoado... Olibiano começou logo cedo a carregar o sofrimento físico da velhice, trazendo consigo o peso de uma velhice precoce.
    Parabéns, Risomar!
    Abraços do,
    Calvino

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  3. Obrigada, Núbia, Obrigada Calvino. É sempre bom receber os comentários generosos de vocês.
    Beijos

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  4. Parece o conto amazônico do boto, ou o realismo fantástico de Cem anos de Solidão, ou não se parece com nada, sendo absolutamente original. Sobre a diferença de idade inicial, meu pai teve um relacionamento que resultou numa filha, que era exatamente 28 anos mais moça que ele. No sentido inverso a sociedade entende e aplaude.
    Eletrizante conto. Prendeu a atenção em cada palavra. Parabéns!

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  5. Obrigada, Mara! O romance do seu pai jamais me chamaria a atenção a ponto de eu escrever sobre ele, pois em nossa sociedade isso é muito comum, não é?
    Beijos

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