

Não é fácil ser exemplo
* Por Mara Narciso
Perdera a metade do seu peso de 65 quilos com a doença de 18 meses. Sabíamos que o mal estava em seu abdome há apenas quatro semanas. A evolução estava galopante como costumam ser esses malditos tumores. Já estávamos bastante chateadas com a perda de memória dessa mulher formidável, e desbravadora, que agia com equilíbrio e inteligência, sem jamais usar da rispidez.
A tristeza que eu sentia diante dela, em seu leito de morte, era quase tão imensa quanto a dor de suas filhas. O sofrimento de estar perdendo a nossa musa, aquela que deu a largada num tempo em que mulher só trabalhava em casa nos deixava tontas. Que sorte ter uma pioneira desse quilate para seguir, para ser o exemplo para nós, as meninas que deixavam a infância, na ocasião em que a conheci.
Ali, na minha frente, ainda mostrava a simplicidade e aquele ar sereno de sempre. A intenção, naquela hora, era distraí-la, dar-lhe força e energia. Tão miúda, tão frágil, com a sonda no nariz, que ainda nos aturdia, mas era a única possibilidade de ser alimentada. A memória recente há poucos anos não era formada. Pouco tempo atrás ainda seria capaz de se lembrar de coisas antigas, mas não do que fora falado agora. Então eu segurei a mão dela com força e lhe contei quem era ela. Com o olhar vivo de uma criança inteligente e curiosa, ela ouvia e ficava feliz em saber que era uma mulher muito querida, uma verdadeira lady, que tinha sido a vida toda uma referência para nós. Eu dizia: você foi uma das primeiras, uma das poucas que tiveram a ousadia de sair, de fazer, de ser alguém brilhante, de mostrar para as outras o quanto a senhora era capaz.
Falei do escritório de contabilidade, muito concorrido, e, de como, entre uma escrita e outra ela vinha correndo fazer o almoço para nós, num minuto. Também ficávamos gratas por ela nos fazer o patê de frango para colocarmos no pão, e comermos, nós, as meninas, junto com Serginho, nosso amigo. Ela me perguntou sobre ele, numa voz rouca e débil. Falei que tinha se tornado um pintor famoso, conhecido como Sérgio Ferreira. Não sei onde achou força para rir, mas riu um riso gostoso e feliz. Eu não queria que ela sofresse mais, porém ela mencionou uma dor. Continuei lhe contando como nós gostávamos dela, uma mulher que teve a coragem de quebrar tabus em 1933, e ir trabalhar fora, ganhar dinheiro e liberdade para contrapor às leis femininas vigentes e assim nos indicar o caminho.
Falei que fazíamos trabalhos escolares com conteúdo, mas que eles ficavam muito mais valiosos quando ela, tarde da noite, algumas vezes até de madrugada, datilografava para nós, colocava uma capa bonita, de papel japonês, e assim valorizava o que tínhamos feito. Ela me disse que não se lembrava de nada disso, e eu tive a alegria de poder contar-lhe tudo, mesmo nessa hora tão sofrida.
Lembrei também, mas não lhe falei, do carro Ford Corcel branco que ela nos comprou, e assim nos proporcionou passeios maravilhosos ao Pentáurea Clube, cuja cota ela comprou contrariando ao marido, numa prova de que o julgamento dela era mais importante. E também de como subíamos a “Camilo” e descíamos a “Doutor”, numa referência às ruas centrais Camilo Prates e Doutor Santos, que tinham outras mão e contra-mão. Recordo agora das festas que ela nos levou, e das viagens que suas filhas e eu pudemos ir, graças a ela. Uma vez me comprou um belo vestido para que eu pudesse ir numa festa de 15 anos. Merecer um mimo desses, eu que era amiga da sua filha, ah, eu não merecia!
Nunca sabemos o quanto amamos as pessoas até quando as estamos perdendo. Faltando pouco para os seus noventa anos, eu ainda a perguntei o ano do seu nascimento. Ela deu outro sorriso e disse que também tinha se esquecido. Eu falei o dia e ano, e ela, ao saber da proximidade de completar as nove décadas de vida, falou: “nossa, estou ficando velha!”, e riu de forma tão ampla que me surpreendeu, pois naquele momento não poderia imaginar que isso aconteceria.
As lágrimas me assaltam, turvando a minha visão, mas não me impedem de colocar os pés sobre os passos dessa mulher de fibra, pessoa íntegra, correta, incapaz de perder a calma ou a compostura, que me deixa uma imagem, senão de perfeição, de esforço, de trabalho, de controle e de exemplo a ser sobejamente seguido. Sabe aquela pessoa cujas pegadas você seguiria sem medo, convicta de que irá desembocar em grandes realizações? Pois saiba que é esse o caminho!
(Homenagem a Dona Ismar Ferreira Soares, no Dia Internacional da Mulher)
* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a hiperatividade”
* Por Mara Narciso
Perdera a metade do seu peso de 65 quilos com a doença de 18 meses. Sabíamos que o mal estava em seu abdome há apenas quatro semanas. A evolução estava galopante como costumam ser esses malditos tumores. Já estávamos bastante chateadas com a perda de memória dessa mulher formidável, e desbravadora, que agia com equilíbrio e inteligência, sem jamais usar da rispidez.
A tristeza que eu sentia diante dela, em seu leito de morte, era quase tão imensa quanto a dor de suas filhas. O sofrimento de estar perdendo a nossa musa, aquela que deu a largada num tempo em que mulher só trabalhava em casa nos deixava tontas. Que sorte ter uma pioneira desse quilate para seguir, para ser o exemplo para nós, as meninas que deixavam a infância, na ocasião em que a conheci.
Ali, na minha frente, ainda mostrava a simplicidade e aquele ar sereno de sempre. A intenção, naquela hora, era distraí-la, dar-lhe força e energia. Tão miúda, tão frágil, com a sonda no nariz, que ainda nos aturdia, mas era a única possibilidade de ser alimentada. A memória recente há poucos anos não era formada. Pouco tempo atrás ainda seria capaz de se lembrar de coisas antigas, mas não do que fora falado agora. Então eu segurei a mão dela com força e lhe contei quem era ela. Com o olhar vivo de uma criança inteligente e curiosa, ela ouvia e ficava feliz em saber que era uma mulher muito querida, uma verdadeira lady, que tinha sido a vida toda uma referência para nós. Eu dizia: você foi uma das primeiras, uma das poucas que tiveram a ousadia de sair, de fazer, de ser alguém brilhante, de mostrar para as outras o quanto a senhora era capaz.
Falei do escritório de contabilidade, muito concorrido, e, de como, entre uma escrita e outra ela vinha correndo fazer o almoço para nós, num minuto. Também ficávamos gratas por ela nos fazer o patê de frango para colocarmos no pão, e comermos, nós, as meninas, junto com Serginho, nosso amigo. Ela me perguntou sobre ele, numa voz rouca e débil. Falei que tinha se tornado um pintor famoso, conhecido como Sérgio Ferreira. Não sei onde achou força para rir, mas riu um riso gostoso e feliz. Eu não queria que ela sofresse mais, porém ela mencionou uma dor. Continuei lhe contando como nós gostávamos dela, uma mulher que teve a coragem de quebrar tabus em 1933, e ir trabalhar fora, ganhar dinheiro e liberdade para contrapor às leis femininas vigentes e assim nos indicar o caminho.
Falei que fazíamos trabalhos escolares com conteúdo, mas que eles ficavam muito mais valiosos quando ela, tarde da noite, algumas vezes até de madrugada, datilografava para nós, colocava uma capa bonita, de papel japonês, e assim valorizava o que tínhamos feito. Ela me disse que não se lembrava de nada disso, e eu tive a alegria de poder contar-lhe tudo, mesmo nessa hora tão sofrida.
Lembrei também, mas não lhe falei, do carro Ford Corcel branco que ela nos comprou, e assim nos proporcionou passeios maravilhosos ao Pentáurea Clube, cuja cota ela comprou contrariando ao marido, numa prova de que o julgamento dela era mais importante. E também de como subíamos a “Camilo” e descíamos a “Doutor”, numa referência às ruas centrais Camilo Prates e Doutor Santos, que tinham outras mão e contra-mão. Recordo agora das festas que ela nos levou, e das viagens que suas filhas e eu pudemos ir, graças a ela. Uma vez me comprou um belo vestido para que eu pudesse ir numa festa de 15 anos. Merecer um mimo desses, eu que era amiga da sua filha, ah, eu não merecia!
Nunca sabemos o quanto amamos as pessoas até quando as estamos perdendo. Faltando pouco para os seus noventa anos, eu ainda a perguntei o ano do seu nascimento. Ela deu outro sorriso e disse que também tinha se esquecido. Eu falei o dia e ano, e ela, ao saber da proximidade de completar as nove décadas de vida, falou: “nossa, estou ficando velha!”, e riu de forma tão ampla que me surpreendeu, pois naquele momento não poderia imaginar que isso aconteceria.
As lágrimas me assaltam, turvando a minha visão, mas não me impedem de colocar os pés sobre os passos dessa mulher de fibra, pessoa íntegra, correta, incapaz de perder a calma ou a compostura, que me deixa uma imagem, senão de perfeição, de esforço, de trabalho, de controle e de exemplo a ser sobejamente seguido. Sabe aquela pessoa cujas pegadas você seguiria sem medo, convicta de que irá desembocar em grandes realizações? Pois saiba que é esse o caminho!
(Homenagem a Dona Ismar Ferreira Soares, no Dia Internacional da Mulher)
* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a hiperatividade”
Parabéns pelo texto Mara.
ResponderExcluirParabéns também para todas as mulheres
anônimas ou famosas, que fizeram da sua
trajetória de vida um exemplo a ser seguido.
Beijos
Que linda e sincera homenagem, Mara. Espero que a homenageada esteja viva e lúcida para compreender e assimilar ao menos um pouco do que você disse. Parabéns pelo texto e pelo gesto.
ResponderExcluirMara
ResponderExcluirSeu texto está um arraso.Parabéns por tamanha sensibilidade!
Beijos
Muito bonito o texto, Maara! Adorei! Abraço!
ResponderExcluir*Mara
ResponderExcluirGostaria de conhecer Dona Ismar. Com certeza tem um coração feliz ! Dê um forte abraço nela por mim. Tenho certeza que, apesar do corpo frágil, tem muita energia espiritual.
ResponderExcluirObrigada , Mara, por compartilhar a história de Dona Ismar com seus leitores do Literário.
Bj
Chorei para escrever e mais do dobro para corrigir. Hoje dona Ismar foi colocar nova sonda, e vai vivendo. Apenas em setembro faz aniversário. Não vai dar tempo. Ela e as filhas são a minha segunda família, quiçá a primeira.
ResponderExcluirPessoal amigo, obrigada pela força.