quinta-feira, 25 de março de 2010


Prolífico, contudo original

Prezados e atentos leitores, boa tarde.
Os escritores que contam com obras vastas, por maior talento que tenham, de uma forma ou de outra, no correr do tempo, tornam-se repetitivos, pelo menos no que diz respeito aos temas de que tratam. Isso vale tanto para ficção quanto para não-ficção. Claro que esse aspecto não reduz seu brilho, até porque, mesmo quando pisam na mesma pegada, o fazem de formas diferentes. Somente um leitor sumamente atento ou um crítico muito organizado e sagaz percebem esse caráter repetitivo.
Emile Zola, por exemplo, escrevia romances em série. Sua obra foi vastíssima e muito acurada. A coleção que mais o marcou na história da literatura, tanto a francesa, quanto a mundial, foi “Os Rougon-Marquart”, composta por vinte romances, em que, através da trajetória ao longo do tempo de uma tradicional família, praticamente reproduz toda a história social da França em um vasto período. Escreveu, também, outras séries de romances. Ou seja, concentrou-se, por muito tempo, num determinado tema, esmiuçando-o, detalhando-o, virando-o no avesso.
O mesmo se pode dizer de Honoré Balzac, com sua magistral “A comédia humana”, composta de 89 volumes de romances, contos e novelas. Todos tinham um fio condutor, que deram continuidade e coerência à série inteira.
No Brasil, podemos citar Érico Veríssimo, com o seu “O tempo e o vento”, coleção de romances em que narra a saga da família Terra-Cambará, desde sua origem, e, através dela, nos dando uma visão panorâmica da própria história do Rio Grande do Sul e, por extensão, do Brasil. A repetição a que me refiro é, pois, a temática, o que não tira, reitero, o mérito desses escritores e, pelo contrário, amplia-os e os consolida.
Mas meu personagem de hoje não é nenhum dos acima citados. Ao completar 70 anos de idade, ele marcou a data com o 70° livro concluído. É como se publicasse, rigorosamente, uma obra inédita por ano, mesmo quando menino, quando não houvesse ainda sequer sido apresentado às primeiras letras, mesmo quando bebê. Refiro-me ao médico e escritor (ou deveria inverter a ordem e dizer escritor e médico?) Moacyr Scliar, que acaba de lançar “Texto, ou: a vida – uma trajetória literária”.
É verdade que o lançamento (da Editora Bertrand Brasil), deveria ser feito há três anos. Por que? Porque foi então que esse gaúcho de Porta Alegre, nascido em 23 de março de 1937, completou 70 anos. Este livro, na verdade, não é seu 70°, mas o 73°. E sua idade, hoje, não é mais de 70 anos, posto que em março completou 73. Mas não importa. Nada disso anula meu raciocínio.
Trago à baila, hoje, esta personalidade literária até como uma espécie de homenagem à nossa entrevistada desta semana, Mara Narciso, igualmente médica e talentosíssima escritora. E tenho certeza que, quando ela chegar à idade de Scliar, terá obra parecida e, por isso, consolidada no mercado editorial.
Mas, voltando a Moacyr, devo observar que, com tantos livros publicados, é admirável o fato dele ainda conseguir nos surpreender. E como surpreende (positivamente, claro)! Essa capacidade de sempre ter alguma surpresa para os leitores, um coelho para tirar da cartola, uma carta inesperada na manga, convenhamos, é rara e notável.
O novo livro, destinado a celebrar os 70 anos de vida do autor, mistura autobiografia (ao comentar, por exemplo, a opção pela medicina, paralela à atividade literária e o acidente de automóvel que quase lhe pôs fim à vida), com uma espécie de antologia de seus romances, contos e crônicas.
Ainda assim, o livro traz novidades. Quais? Textos raros, inéditos, da adolescência. Entre suas preocupações constantes, estão muitas que também são as minhas, como a gênese de um novo escritor (como esse talento nasce, se desenvolve e se consolida) assim como os destinos da arte, do homem, da humanidade e do mundo.
Moacyr Scliar é, desde 2003, justissimamente, membro da Academia Brasileira de Letras. Várias de suas obras foram adaptadas para o cinema. Muitas delas foram traduzidas para doze línguas diferentes e circulam, com inegável sucesso, mundo afora.
Poderia abordar, também, sua não menos brilhante trajetória como médico sanitarista e professor universitário. Não o farei, contudo. Não pelo menos agora, já que ela merece um texto todo especial. Prefiro concentrar-me hoje, posto que resumidamente, na sua carreira de escritor.
Dos seus livros (e li quase todos eles), citaria, por exemplo, romances marcantes, como “A guerra do Bom Fim”, “Mês de cães danados”, “Doutor Miragem”, “Na noite do ventre o diamante” ou “Manual da paixão solitária”. Ou contos não menos importantes, como “O carnaval dos animais”, “O olho enigmático”, “O amante de Maddona”, “Pai e filho. Filho e pai”, ou “Histórias que os jornais não contam”. Ou seus livros de crônicas (meus preferidos), como “A massagista japonesa”, “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”, “A língua de três pontas: crônicas e citações sobre a arte de falar mal”. Ou os de ensaios, como “Do mágico ao social; a trajetória da saúde pública”, “Cenas médicas” ou “Enigmas da culpa”.
Creio, todavia, que demonstrei razoavelmente a tese a que me propus demonstrar. Ou seja, a de que é possível a um escritor ser prolífico, caudaloso, com uma obra numerosa e vasta e sem se repetir, nem em temas, e muito menos nas abordagens destes. Moacyr Scliar nos comprova, de sobejo, essa possibilidade, posto que rara e acessível, somente, a escritores geniais, como ele é.

Boa leitura.

O Editor.

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