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Fantoche do medo
* Por Paulo Valença
1
Luzia preocupada:
- Esse negócio de você tá entregando essa mercadoria é muito perigoso. Você mesmo tem exemplos aqui no morro...
Ele busca lhe aquietar o espírito e, sorrindo:
- Até certo ponto você tá certa, mas, Luzia, a gente tem de viver, arrumar o pão.
Então com a mão direita alisando-lhe a barriga já crescida completa:
- E vamos ter novidade por esses dias!
Luzia sorri, entendendo a insinuação ao filho que virá.
- É, vamos ter novidade.
O companheiro apressa-se:
- Vou lá. Até mais tarde.
Cruza a salinha, o terraço e, no oitão da casa, subindo na moto parte em velocidade. Ela fica no terraço, com os olhos seguindo-o descer a rua inclinada, estreita, de moradias pequenas, de porta e janela, conjugadas, semelhantes.
Ah, se o Ivan conseguisse outra ocupação... Esse “ganho” de entregar os pacotinhos proibidos é arriscado demais. De vez em quando, se tem notícia de um corpo encontrado crivado por balas e...
- Seja o que Deus quiser!
Suspira, criando força e nervosa ruma à cozinha, para se reentregar às funções domésticas. Como está, precisa se alimentar, ter mais energia, se precaver. Em passos lentos deixa o terraço, corta a salinha, o corredor e ao lado esquerdo deste, adentra na cozinha. Através da porta aberta desta, o sol penetra. Indiscreto. Iluminando a nova manhã, que vai passando. Passando...
Envergando-se, acende o fogão e segue a água que aos poucos, iniciará a fervura na chaleira. De uma residência circunvizinha o rádio toca o sucesso “brega” do momento. À direita na avenida no alto do morro, um ônibus passa devagar, na prevenção de um acidente. Atrás deste, uma moto acompanha-o. Onde estará agora o Ivan? A água que já contém o café sobe, fervendo. Desliga o fogão e despeja o líquido na garrafa-térmica.
2
- Agora Ivan tem uma lei: não “farrape” o pagamento: mercadoria entregue, quero o retorno em dinheiro! Nada de desculpas, “enroladas”. Entendeu?
O rosto gordo, negro, fechado, encarando-o e ele procurando não tremer a voz, se mostrar seguro:
- Tá certo Pezão. Não tem vacilo.
- Assim é que se fala. “Farrapou” cara, tem as conseqüências!
- Tá, entendi.
Então o braço forte se estendeu e a mão grande lhe passou o envelope com os pacotinhos. Recebeu-o e retirou-se. Suando. O coração aos pulos. A vista meio embaçada.
Assim iniciou as entregas e o resultado foi surgindo com o pagamento que apesar de tudo, dos riscos, compensava. E, com a mão nervosa, enquanto contava as cédulas, se desculpava intimamente. Tinha de sobreviver com a Luzia, custasse o que lhe custasse! Afinal, quem nessa vida de uma maneira ou de outra, não corre o risco pela sobrevivência?
- É isso aí cara.
3
O edifício é este. A entrega será no segundo andar, sala 26. Estaciona a moto. Acorrenta-a para evitar que alguém a furte e, com a sacola às costas, contendo o envelope com a mercadoria, cruzando apressado a calçada, adentra no prédio. Sobe pelo elevador. Salta. A porta defronte, com a numeração. Pressiona a “cigarra”, anunciando-se. Logo a porta é aberta e a voz ordena:
- Entra meu!
Atende e de repente se ver preso no golpe-gravata que o braço musculoso lhe dar, envolvendo-lhe o pescoço, enquanto seus braços são seguros por as mãos de dois sujeitos também marrudos. E o quarto homem, o mesmo que o recebera torna a falar:
- Caísse direitinho Pombinho! Pega a mercadoria Branquinho.
Então, o comparsa à esquerda, mantendo seu braço preso, com a outra mão, a direita, livre obedece. E ele, Ivan, sem a sacola e a encomenda valiosa, assim prisioneiro do golpe-gravata e das mãos fortes que lhe imobilizam o movimento dos braços, sofre a cruel realidade.
O braço lhe aperta o pescoço, fazendo-o mal respirar, as mãos são garras de ferros que lhe machucam os braços finos, imobilizando-o de qualquer reação, e ele tomba a cabeça ao próprio peito, fugindo do rosto amarelo do homem que lhe parece ser o chefe do grupo, e que sorri, vitorioso e, com vagar as lágrimas brotam dos seus olhos aflitos, angustiados pela inesperada cena da qual é vítima. Triste vítima. Em seu desespero de impotente, de súbito reflete: E agora, o que mais lhe acontecerá?
- Solta o Pombinho!
Liberto das mãos opressoras se mantém de pé, imóvel, sem reação, à semelhança de um fantoche do medo. E mais uma vez a indagação íntima: E agora, o que será dele, quando o Pezão souber que ele está sem a mercadoria e sem o dinheiro do pagamento desta?
- Cai fora, sem olhar pra trás.
A voz cheia, autoritária. Mais uma vez obedece. Fora da sala, dirige-se como um bêbedo, em passos vacilantes ao elevador, que se abre, atendendo-lhe à solicitação do dedo nervoso.
O elevador desce, conduzindo-o sozinho em seu fracasso, dentro da angústia das horas seguintes. Temíveis horas.
4
O noticiário policial anuncia outra “desova” de um corpo perfurado por balas, na Mata de Dois Unidos, enquanto na salinha de uma casa do morro próximo, a mulher grávida chora a perda do companheiro.
- Eu bem que avisei pra o Ivan como era arriscado aquele serviço!
Solidárias as vizinhas cercam-na. E uma dessas, buscando lhe aquietar a alma, encorajá-la a ver a realidade de frente:
- Luzia peça força a Deus. É assim mesmo, criatura, pobre nasceu pra sofrer.
- Também acho D. Maria.
Diz a negra gorda, baixa, aquiescendo. E, de repente, o silêncio cai novamente, abraçando-as, acolhendo a dor pela querida perda. Luzia chora, ante os olhos apiedados das parceiras do infortúnio.
* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.
* Por Paulo Valença
1
Luzia preocupada:
- Esse negócio de você tá entregando essa mercadoria é muito perigoso. Você mesmo tem exemplos aqui no morro...
Ele busca lhe aquietar o espírito e, sorrindo:
- Até certo ponto você tá certa, mas, Luzia, a gente tem de viver, arrumar o pão.
Então com a mão direita alisando-lhe a barriga já crescida completa:
- E vamos ter novidade por esses dias!
Luzia sorri, entendendo a insinuação ao filho que virá.
- É, vamos ter novidade.
O companheiro apressa-se:
- Vou lá. Até mais tarde.
Cruza a salinha, o terraço e, no oitão da casa, subindo na moto parte em velocidade. Ela fica no terraço, com os olhos seguindo-o descer a rua inclinada, estreita, de moradias pequenas, de porta e janela, conjugadas, semelhantes.
Ah, se o Ivan conseguisse outra ocupação... Esse “ganho” de entregar os pacotinhos proibidos é arriscado demais. De vez em quando, se tem notícia de um corpo encontrado crivado por balas e...
- Seja o que Deus quiser!
Suspira, criando força e nervosa ruma à cozinha, para se reentregar às funções domésticas. Como está, precisa se alimentar, ter mais energia, se precaver. Em passos lentos deixa o terraço, corta a salinha, o corredor e ao lado esquerdo deste, adentra na cozinha. Através da porta aberta desta, o sol penetra. Indiscreto. Iluminando a nova manhã, que vai passando. Passando...
Envergando-se, acende o fogão e segue a água que aos poucos, iniciará a fervura na chaleira. De uma residência circunvizinha o rádio toca o sucesso “brega” do momento. À direita na avenida no alto do morro, um ônibus passa devagar, na prevenção de um acidente. Atrás deste, uma moto acompanha-o. Onde estará agora o Ivan? A água que já contém o café sobe, fervendo. Desliga o fogão e despeja o líquido na garrafa-térmica.
2
- Agora Ivan tem uma lei: não “farrape” o pagamento: mercadoria entregue, quero o retorno em dinheiro! Nada de desculpas, “enroladas”. Entendeu?
O rosto gordo, negro, fechado, encarando-o e ele procurando não tremer a voz, se mostrar seguro:
- Tá certo Pezão. Não tem vacilo.
- Assim é que se fala. “Farrapou” cara, tem as conseqüências!
- Tá, entendi.
Então o braço forte se estendeu e a mão grande lhe passou o envelope com os pacotinhos. Recebeu-o e retirou-se. Suando. O coração aos pulos. A vista meio embaçada.
Assim iniciou as entregas e o resultado foi surgindo com o pagamento que apesar de tudo, dos riscos, compensava. E, com a mão nervosa, enquanto contava as cédulas, se desculpava intimamente. Tinha de sobreviver com a Luzia, custasse o que lhe custasse! Afinal, quem nessa vida de uma maneira ou de outra, não corre o risco pela sobrevivência?
- É isso aí cara.
3
O edifício é este. A entrega será no segundo andar, sala 26. Estaciona a moto. Acorrenta-a para evitar que alguém a furte e, com a sacola às costas, contendo o envelope com a mercadoria, cruzando apressado a calçada, adentra no prédio. Sobe pelo elevador. Salta. A porta defronte, com a numeração. Pressiona a “cigarra”, anunciando-se. Logo a porta é aberta e a voz ordena:
- Entra meu!
Atende e de repente se ver preso no golpe-gravata que o braço musculoso lhe dar, envolvendo-lhe o pescoço, enquanto seus braços são seguros por as mãos de dois sujeitos também marrudos. E o quarto homem, o mesmo que o recebera torna a falar:
- Caísse direitinho Pombinho! Pega a mercadoria Branquinho.
Então, o comparsa à esquerda, mantendo seu braço preso, com a outra mão, a direita, livre obedece. E ele, Ivan, sem a sacola e a encomenda valiosa, assim prisioneiro do golpe-gravata e das mãos fortes que lhe imobilizam o movimento dos braços, sofre a cruel realidade.
O braço lhe aperta o pescoço, fazendo-o mal respirar, as mãos são garras de ferros que lhe machucam os braços finos, imobilizando-o de qualquer reação, e ele tomba a cabeça ao próprio peito, fugindo do rosto amarelo do homem que lhe parece ser o chefe do grupo, e que sorri, vitorioso e, com vagar as lágrimas brotam dos seus olhos aflitos, angustiados pela inesperada cena da qual é vítima. Triste vítima. Em seu desespero de impotente, de súbito reflete: E agora, o que mais lhe acontecerá?
- Solta o Pombinho!
Liberto das mãos opressoras se mantém de pé, imóvel, sem reação, à semelhança de um fantoche do medo. E mais uma vez a indagação íntima: E agora, o que será dele, quando o Pezão souber que ele está sem a mercadoria e sem o dinheiro do pagamento desta?
- Cai fora, sem olhar pra trás.
A voz cheia, autoritária. Mais uma vez obedece. Fora da sala, dirige-se como um bêbedo, em passos vacilantes ao elevador, que se abre, atendendo-lhe à solicitação do dedo nervoso.
O elevador desce, conduzindo-o sozinho em seu fracasso, dentro da angústia das horas seguintes. Temíveis horas.
4
O noticiário policial anuncia outra “desova” de um corpo perfurado por balas, na Mata de Dois Unidos, enquanto na salinha de uma casa do morro próximo, a mulher grávida chora a perda do companheiro.
- Eu bem que avisei pra o Ivan como era arriscado aquele serviço!
Solidárias as vizinhas cercam-na. E uma dessas, buscando lhe aquietar a alma, encorajá-la a ver a realidade de frente:
- Luzia peça força a Deus. É assim mesmo, criatura, pobre nasceu pra sofrer.
- Também acho D. Maria.
Diz a negra gorda, baixa, aquiescendo. E, de repente, o silêncio cai novamente, abraçando-as, acolhendo a dor pela querida perda. Luzia chora, ante os olhos apiedados das parceiras do infortúnio.
* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.
Ficção?
ResponderExcluirNão...a mais dura e cruel realidade.
Seja para colocar o pão na mesa, seja
para simplesmente comprar aquele belo
calçado anunciado na tv...o fim é sempre
o mesmo.
Ótimo texto.
Abraços
"Crônica de uma morte anunciada". Nem que o autor quisesse seria possível escapar. Autenticidade.
ResponderExcluirReparo: " Atende e de repente se ver preso no golpe-gravata que o braço musculoso lhe dar,", não seria "vê" e "dá"?
nubia,
ResponderExcluirAgradeço-lhe sensibilizado o comentário rápido, inteligente ao meu texto.
Você sabe opinar, sabe das coisas.
Obrigado!
Abraço. Paulo.
Mara,
ResponderExcluirVocê em síntese diz tudo e como autor do texto, de coração aberto digo-lhe: Obrigado!
Quanto ao "reparo", você está certa, houve sim, um "vacilo" de minha parte.
Abraço carinhoso. Paulo.