quarta-feira, 31 de março de 2010




O Capibaribe é Um rio de gente...

* Por Marco Albertim

Se fosse de peixes... Ou de mais peixes como há cinquenta anos, teria abundância de gente nas suas margens. Para dar sustento à copiosa garimpagem de Inácio França e Tuca Siqueira, inventariando ribeirinhos, os mais velhos, onde o rio sobrevive da memória de cada um. Sem bateia, os dois começam “num olho-d’água fria e limpa”, no Sítio Lagoa do Angu, Poção. Um filete de água passa por trás da casa do sanfoneiro Inácio José Bezerra; é o Catibiribe, Catibaribe ou Capibaribe; “tanto faz”, explica Inácio no início da romaria. Sem velas mas com devoção ao rio Capibaribe. A menção a um rio limpo vem do sanfoneiro: “A nascente toda a vida foi ali, daquele tamanho. A nascente do rio é lá. A mata nunca foi mais, nem foi menos. É aquilo ali. A mata só é aquela reboladinha.” Telúrico, inda que pungente quando o rio avança agreste afora.

Um rio de gente – histórias, causos e lendas do Capibaribe é livro que presta serviço ao propósito de restaurar o Capibaribe. Inácio escreve com olhos de uma iabá fluvial. Tuca fotografa, sai-se uma iconógrafa. Mesmo posando, o sanfoneiro com o instrumento e Zefinha, sua mulher, na janela da casa, são capturados nos limites do riso tímido. Zefinha ri, dando conta da sorte confinada. O marido, como numa cisma de Guimarães Rosa: “Sofri mais do que jumento embaicado, passei fome, passei frio, dormi descoberto que nem um tanguari. (...) Eu botava a gamela de apanhar massa no coxo pra botar na prensa, botava a gamela, eu subia, pegava o meio da roda, o meio da roda vinha em tempo de arrancar meu queixo”.

No Sítio do Saco, Josefa Leandro de Lima, 85 anos, dá mostras de fé telúrica. O rio ali, um riacho, é invadido por águas das serras sob as chuvas: “(...) nós passamos um tempão só cambitando menino. Cambitando menino pra casa da minha mãe: ‘Vamos morrer tudo junto!’ E no meio da chuva a gente ia tudo correndo pra lá”.

Em Serrote Apertado, Jataúba, Inácio França tem a chance de se apropriar das cismas, dos efeitos da escassez de dados de meios tecnológicos. Diz o autor que “A dificuldade para obter informações e notícias das cidades (...) era proporcional à intimidade com os bichos, as plantas e o clima.” Porque o agricultor José Gomes, 81 anos, deduz: “Os passarinhos da natureza adivinham tudo. A gente não adivinha nada, mas eles adivinham tudo. Se amanhecer com eles cantando, aquela barulheira toda, pode esperar que chove. Se amanhecer o dia tudo calado, pode se aquietar, que não chove mais, não”.

Zé Ferrão, de Poço Fundo, Santa Cruz do Capibaribe, tem 89 anos. Foi caçar mocó, o bicho “deu uma dentada que fechou o cano da espingarda”. O irmão, pescando, pôs “uma pratinha” no anzol para a linha descer no rio. Quando puxou, uma traíra veio à tona e disse “não tem troco, não.” Por outra, foi em Duas Estradas, Surubim, que Antônio Ângelo de Albuquerque, 73 anos, começou a namorar com a prima, Maria do Livramento. Na beira do rio, conforme ela: “(...) a areia do rio era bem limpa, era um pátio, era uma neve (...) Uma noite de lua bonita, com muitos daqueles caga-fogo que chamam agora de vaga-lume(...)”

Tiago Ramos tem 84 anos. Em Limoeiro, fez campanha para Miguel Arraes; e diz que Chico Heráclio, “muita gente achava ele ruim, mas para mim, ele era bom demais”. É supérflua a informação de que “Arraes, em plena ditadura militar, vivia no exílio”. O perfil do coronel Heráclio é suavizado ainda pela professora aposentada, Maria José Rodrigues da Silva: “E ele era como todo mundo já sabe: gostava muito de mandar, era rigoroso assim e fazia das dele, né? Mas, em si, não era um homem mal (sic), não”.

Exemplar o depoimento da agricultora Valdenice Tomé Gomes. Com a construção da barragem de Carpina, quase expulsa de seu sítio, disse ao engenheiro chefe do Dnocs: “Meu pai faleceu e deixou a propriedade dele dentro das águas. Então, eu continuava herdeira e residia aqui, então eu esperei receber. Quando vieram pagar, só dava pra comprar uma unha e morrer embaixo do viaduto com uma turma de meninos pedindo esmola.” Já em Desterro, Paudalho, Maria Paula é rezadeira. É cega mas pescou acari no Capibaribe. “Temperava ele bem temperado, enrolava na folha de bananeira e botava no fogo. Mas, é bom. Quando dava fé, tava aquele cheiro no mundo. É gostoso!”

Todo o livro é uma narrativa despretensiosa, simples. Há que se dizer que o autor – jornalista – não atentou para o uso de cacoetes do ofício. Usou de prosa livre, talvez por isso inchando expressões – “verdadeiros dormitórios”; “mas faz tempo que é mais conhecido pelo seu título e apelido”; “Antônio já foi pedreiro”; “(...) pelo menos 30 nadadores entravam nas águas cristalinas(...)”; “Dois anos depois, garantiu o segundo lugar em mais um ótimo desempenho.” Até com o uso de “Zona Rural” o cacoete se mostra. Desnecessário, visto que a plasticidade do cenário dispensa outros recursos.

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

Um comentário:

  1. Muito gostoso de ler: uma viagem a região do agreste. Aqui nem Minas ninguém se chama Inácio, ou quase. Em compensação há um nome que não existe no nordeste e é muito comum por aqui: Ildeu. Vi que os entrevistados são todos idosos. A longevidade já é recorrente em Pernambuco.

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