quarta-feira, 24 de março de 2010




Crônica do Recife... Ou uma noite com Valquíria

* Por Marco Albertim

Nas primeiras chuvas do inverno, o canto da praça, sob o oitizeiro, ficou vazio. Na véspera, um mudo grupo de moços, sem saber o que falar, sorvera um tubo plástico de cola; cada um com o seu. Com a chuva, abrigaram-se sob a marquise do Suíça Hotel; sem correria, posto que a rotina enfadonha nunca lhes reservara surpresas, a não ser a certeza de que uma brisa noturna insinuar-se-ia nos narizes, trazendo um feliz embrulho para os estômagos vazios. O porteiro olhou-os, pôs nos olhos a tolerância de um cão de guarda. Conhecia-os, tinha-os como cinco cheira-cola vadios; recontou-os para reafirmar o instinto canino. A menina de quinze anos, cabelos soltos, peitos crescidos, coagidos na blusa apertada; muda, pedindo para não ser expulsa dali. Pusera o tubo de cola entre um peito e outro, cruzando os braços. Nos olhos o efeito da droga, inda que os braços, as pernas mostrassem pelos eriçados sob o frio. Era a única com um colchão de espuma, sem tecido, o mais confortável entre as esteiras de papelão trazidas pelos outros.

Na segunda-feira, pouco ou nenhum registro na portaria do hotel. O porteiro entrou, deixou a porta da frente entreaberta, sentou na cadeira de costume, fechou os olhos para dormir... Ou para fingir familiaridade com a noite. Até o começo da madruga, nenhum casal alugara os lençóis rotativos do hotel. Menos mal, ele urdiu. Logo o sol cobriria as árvores do 13 de Maio, os moleques voltariam para o oitizeiro junto com o mascote, o vira-lata pulguento.

Às cinco horas, o moleque mais velho se deu conta do mundo. Pálpebras inchadas, cílios remelosos, coçou os olhos e viu o colchonete de Valquíria vazio. Quis acordar os outros. Não foi preciso, a narina suja e o fedor da rua acordaram o resto. Não tinham hora para comer, vez que queriam comer a toda hora. Mas os quiosques com guaranás, coxinhas, o cheiro, deram-lhes sustento nas pernas. Ficaram mais uma hora, o tempo maginado para o chão de grama e areia, sob o oitizeiro, enxugar. Valquíria deixara a própria cama, por certo dormira numa melhor, longe da friagem.

De volta à sombra do oitizeiro, repuseram os minguados trapos. A cama da loura Valquíria, enrolada num cordão de barbante. Cada um seguiu para um lado, catando sobras nos quiosques, nas lanchonetes. Os tubos de cola, escondidos entre os panos. O vira-lata submisso, intimidado com os motores dos ônibus, aquietara-se entre as raízes da árvore.

O Parque 13 de Maio enchera-se de estudantes. Havia faixas alusivas ao aniversário da cidade.

O moleque mais velho, de volta ao quiosque vizinho à marquise do hotel, não se surpreendeu quando viu Valquíria saindo da portaria. Atrás dela, o porteiro; tomara um banho, o zeloso porteiro. Valquíria também se banhara, mas os cabelos estavam revoltos e o tubo de cola ainda entre um peito e outro.

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

Um comentário:

  1. Vivem à deriva e como Deus manda.
    Ninguém os olha de frente e se pudessem
    os tornariam invisíveis.
    Mas tem sempre um para tirar proveito
    deles, pisoteando o pouco que restou de
    seus sonhos.
    Belo texto Marco.
    Abraços

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