domingo, 21 de março de 2010




Princípios da pesquisa

* Por Albert Einstein

O Templo da Ciência apresenta-ser como um edifício de mil formas. Os homens que o freqüentam, bem como as motivações morais que para ali os levam, revelam-se bem diferentes. Um se entrega à Ciência com o sentimento de felicidade que a potência intelectual superior lhe causa. Para ele, a Ciência é o esporte adequado, a vida transbordante de energia, a realização de todas as ambições. Assim deve ela se manifestar! Muitos outros, porém, estão igualmente neste Templo exclusivamente por uma razão utilitária e não oferecem em troca a não ser sua substância cerebral! Se um anjo de Deus aparecesse e expulsasse do Templo todos os homens das duas categorias, o Templo ficaria bem vazio, mas, mesmo assim, ainda se encontrariam homens do passado e do presente. Entre estes encontraríamos nosso Planck. É por isso que o estimamos.
Bem sei que, com nosso aparecimento, expulsamos, despreocupados, muitos homens de valor que edificaram o Templo da Ciência em grande, talvez em sua maior parte. Para nosso anjo, a decisão a tomar seria em vários casos bem difícil. Mas uma certeza se me impõe. Não houvesse indivíduos como os excluídos, o Templo não teria sido edificado, da mesma forma que uma floresta não pode expandir-se se apenas contiver plantas trepadeiras! Na realidade, tais indivíduos se contentam com qualquer teatro para sua atividade. As circunstâncias exteriores é que decidirão sobre a carreira de engenheiro, de oficial, de comerciante, ou de cientista. Todavia, olhemos de novo para aqueles que encontraram favor aos olhos do anjo. Mostram-se singulares, pouco comunicativos, solitários e, apesar desses pontos comuns, são menos parecidos entre si do que aqueles que foram expulsos. Que é que os conduziu ao Templo? A resposta não é fácil e certamente não pode aplicar-se a todos uniformemente. Contudo, em primeiro lugar, com Schopenhauer, imagino que uma das mais fortes motivações para uma obra artística ou científica consiste na vontade de evasão do cotidiano com seu cruel rigor e monotonia desesperadora, na necessidade de escapar das cadeias dos desejos pessoais, eternamente instáveis. Causas que impelem os seres sensíveis a se libertarem da existência pessoal, para procurar o universo da contemplação e da compreensão objetivas. Essa motivação assemelha-se à nostalgia que atrai o morador das cidades para longe de seu ambiente ruidoso e complicado, para as pacíficas paisagens das altas montanhas, onde o olhar vagueia por uma atmosfera calma e pura e se perde em perspectivas repousantes, que parecem ter sido criadas para a eternidade.
A este motivo de ordem negativa, ajunta-se outro mais positivo. O homem procura formar, de qualquer maneira, mas segundo a própria lógica, uma imagem simples e clara do mundo. Para isso, ultrapassa o universo de sua vivência, porque se esforça em certa medida por substituí-lo por essa imagem. A seu modo é esse o procedimento de cada um, quer se trate de um pintor, de um poeta, de um filósofo especulativo ou de um físico. A essa imagem e à sua realização consagra o máximo de sua vida afetiva para assim alcançar a paz e a força que não pode obter nos excessivos limites da experiência agitada e subjetiva.
Entre todas as imagens possíveis do mundo, que lugar conceder à do físico teórico? Ela encerras as maiores exigências, pelo rigor e exatidão da representação das relações, única a ser autorizada pelo uso da linguagem matemática. Mas em compensação, no plano concreto, o físico deve se restringir, tanto mais quanto em se contentar em representar os fenômenos mais evidentes acessíveis a nossa experiência, porque todos os fenômenos mais complexos não podem ser reconstituídos pelo espírito humano com a precisão sutil e espírito de constância exigidos pelo físico teórico. A extrema nitidez, a clareza e a certeza só se adquirem à custa de imenso sacrifício: a perda da visão de conjunto. Mas então, qual pode ser a sedução de compreender precisamente uma parcela tão exígua do universo e abandonar tudo o que é mais sutil e mais complexo por timidez ou falta de coragem? O resultado de uma prática tão resignada ousaria ostentar o audacioso nome de “Imagem do mundo”?
Penso ser muito bem merecido este nome. Porque as leis gerais, base da arquitetura intelectual da física teórica ambicionam ser válidas para todos os fatos da natureza. E graças a estas leis, por utilizar o itinerário da pura dedução lógica, poder-se-ia encontrar a imagem, quer dizer, a teoria de todos os fenômenos da natureza, inclusive os da vida, se este processo de dedução não superasse, e de muito, a capacidade do pensamento humano. A renúncia a uma imagem física do mundo em sua totalidade não é uma renúncia de princípio. É uma escolha, um método.
A suprema tarefa do físico consiste, então, em procurar as leis elementares mais gerais, a partir das quais, por pura dedução, se adquire a imagem do mundo. Nenhum caminho lógico leva a tais leis elementares. Seria antes exclusivamente uma intuição a se desenvolver paralelamente â experiência. Na incerteza do método a seguir, seria possível crer que qualquer número de sistemas de física teórica de valor equivalente bastaria. Em princípio, esta opinião é, sem dúvida correta. Mas a evolução mostrou que, de todas as construções concebíveis, uma e somente uma, em um dado momento, se revelou absolutamente superior a todas as outras. Nenhum daqueles que realmente aprofundaram o assunto negará que o mundo das percepções determina de fato rigorosamente o sistema teórico, embora nenhum caminho lógico conduza das percepções aos princípios da teoria. A isto Leibnitz denominava e significava pela expressão de “harmonia preestabelecida”. Com violência, os físicos censuraram a não poucos teóricos do conhecimento o não levarem bem em conta esta situação. Aqui também, a meu ver, se encontram as raízes da polêmica que, há alguns anos, opôs Mach a Planck.
A nostalgias da visão desta “harmonia preestabelecida” persiste em nosso espírito. Contudo Planck se apaixona pelos problemas mais gerais da nossa Ciência sem se deixar atrair por objetivos mais lucrativos e mais fáceis de serem atingidos. Por várias vezes ouvi dizer que confrades tentavam explicar seu comportamento por uma força de vontade e uma disciplina excepcionais. Enganam-se, ao que me parece. O estado afetivo que condiciona semelhantes proezas mais se assemelha ao estado de alma dos religiosos ou dos amantes. A perseverança diária não se constrói sobre uma intenção ou um programa, mas se baseia numa necessidade imediata.
Ele está aí, nosso querido Planck, sentado e divertindo-se interiormente com minhas manipulações infantis da lanterna de Diógenes. Nossa simpatia por ele não precisa de pretextos. Possa o amor pela Ciência embelezar sua vida também no futuro e levá-lo à resolução do problema físico mais importante de nossa época, problema que ele mesmo colocou e faz progredir consideravelmente! Que consiga unificar em um único sistema lógico a teoria dos “quanta”, a eletrodinâmica e a mecânica.

(
Discurso pronunciado por ocasião do sexagésimo aniversário de Max Plancj e publicado no livro “Como vejo o mundo”, Círculo do Livro).

* Físico, criador, entre outras coisas, da Teoria da Relatividade.

Um comentário:

  1. Ótima escolha, Pedro. Pude notar nas palavras de Einstein o mesmo que noto em criadores literários ou artísticos: ele critica e saúda um confrade pelas semelhanças e identidades das próprias escolhas.
    O objetivo final que ele esperava ver realizar em Planck era o mesmo dele, Einstein.

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