quarta-feira, 17 de março de 2010




Como se realizar na vida

* Por Mara Narciso

Era praia todo dia, bem cedinho, antes do sol raiar ou de chegar o primeiro banhista. Fazia uma corrida, e abraçava o sol que chegava. Após vigorosas braçadas na água morna do mar baiano, em frente a sua casa num bairro afastado, depois um banho de água doce, um café preto com cuscuz e estava pronta para o dia de doação. A missionária morava sozinha. Adepta convicta da vida evangélica seguia a doutrina, preceitos e ritos litúrgicos com alegria, sendo assim, tinha existência espartana, numa vida muito simples, porém segura. Toda sua vida era em prol da sociedade carente, então, fazia da religião a sua razão de existir.

Nenhum vício, nenhuma vida mundana, a ex-católica havia se convertido, e dedicara toda a sua vida a proclamar os ensinamentos da Bíblia. Acreditava e pregava, dando o exemplo de sinceridade, bom caráter e retidão. Trabalhava enquanto luz havia, desde cedinho até a noite em comunidades pobres, levando ajuda espiritual e acalmando, consolando os aflitos, levando a palavra de Cristo àqueles que nada têm, nem mesmo um gesto amigo ou qualquer compreensão.

A família morava noutro estado, numa cidade de porte médio e pelo menos uma vez ao ano visitava os pais. Assim os dois luxos da sua vida eram o banho de mar de madrugada e a viagem anual a sua terra natal. Estava tão adaptada aos costumes locais, que perdera alguns hábitos anteriores para adquirir os novos. Até a alimentação era toda a base de comidas regionais. Envolvida com as leituras bíblicas e estudos de música sacra, relacionava-se muito bem com as pessoas das comunidades assistidas por ela, especialmente as crianças. Tocava órgão e cantava com entusiasmo, à frente do coro dos meninos e meninas que treinava. O seu sustento de moça totalmente envolvida com a vida religiosa vinha dos donativos dos fiéis da sua igreja. Sentia-se bem inserida nesse mundo, satisfeita com o caminho que escolhera, uma pessoa feliz e realizada. O seu objetivo era alcançado no dia a dia, e vendo crescer o resultado do seu trabalho, nunca tinha crises existenciais e nem fazia questionamentos que muitos fazem e para os quais nem sempre têm respostas.

Numa visita antecipada à família, devido à doença do seu pai, ficou conhecendo um amigo dele, também internado no mesmo hospital. Não era evangélico, sendo também pessoa honesta, correta, com vida financeira equilibrada e confortável, e sentia-se muito só, pois ficara viúvo há pouco tempo. A moça notou a carência do novo amigo e sendo pessoa paciente e caridosa, deu a devida atenção ao recém-conhecido. O pai dela, vendo aquela amizade incipiente, e sabedor de que a sua saúde estava muito comprometida, e possivelmente não viveria muito, teve receio de deixar a última filha solteira desamparada, e sugeriu a ela que se conhecessem mais, e quem sabe pudesse daí nascer um namoro ou até mesmo um casamento. Ele faria muito gosto se assim fosse, já que era um amigo querido e que estava muito triste. A missionária aceitou a proposta, desta vez vinda do pretendente, um senhor ainda forte, embora não de todo saudável. Voltou ao nordeste para romper suas atividades religiosas, mas antes ficaram noivos. Logo foi realizado o casamento.

Contraiu matrimônio aos 40 anos com um homem 25 anos mais velho, experimentando a segurança de uma vida com maior tranqüilidade financeira, status e respeitabilidade de senhora casada. Manteve a sua inabalável fé religiosa, como também os seus hábitos sociais reclusos, porém, largou a militância missionária. O marido é um homem bom, de excelentes modos, educado, e atencioso. Não tiveram filhos, mas já havia um monte de enteados. O pai dela faleceu tempos depois e a vida seguiu-se normal. A mulher sentia saudade da vida de antes, mas não se queixava, nem mesmo quando a saúde do marido abalou-se, e ela mal podia sair de casa. A rotina começou a pesar, e estar ao lado dele, cuidando de tudo, ficou difícil, pois ele não conseguia nem cuidar de si nas menores coisas. Além de se ocupar dele, a esposa precisou sair na frente e tornar-se marido e mulher em tudo.

Olhando de fora, nota-se um homem idoso, adoentado e frágil, com um andar inseguro, e uma mulher de cinco décadas, mas que o convívio tornou velha, e bem mais acabada do que diz a sua identidade. Tem acesso a uma conta bancária invejável para muitos, mas apresenta um ar cansado e quase infeliz, precocemente suspirosa. Largou a rotina de solteira pobre e independente pelo casamento seguro, a pedido do pai. Não menciona arrependimento, porém a sua não realização no matrimônio pode-se adivinhar: além do semblante pesado e os sopros altos e mal abafados, ostenta cinco dezenas de quilos a mais, que adquiriu em dez anos de vida a dois.

* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

7 comentários:

  1. Custo a entender muitas vezes o motivo
    de nos "darmos" ao sacrifício.
    Nos atropelamos pelo outro e quando
    sofremos...temos que disfarçar.
    Belo texto Mara.
    Beijos

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  2. Que melancólico, não? A protagonista parece ser o tipo de pessoa que vai acatando o que Deus quer que seja, ao invés de exercer o domínio da própria vida. Mas não a condeno. Todos nós temos um pouco dessa aceitação suicida. Legal o seu texto, Mara.

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  3. A vida da gente é tão curta,fazer só o que os outros querem? Tô fora!
    Linda crônica que nos leva a pensar, Mara. Parabéns!
    Beijos

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  4. O clichê corrente é de que toda mulher só se realizará no casamento, e alguma que estiver fora desse escript é tida como frustrada. Não é raro pessoas reconhecerem como "esquisita" uma mulher religiosa. A intenção do texto foi desconstriuir esse lugar-comum e mostrar que o padrão pode não realizar uma ou outra mulher.

    Núbia, Marcelo e Risomar, fico feliz com a leitura e comentários. Obrigada!

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  5. Mara, interessante seu texto. Padrões são castradores, com certeza todos podem ser felizes do modo que escolherem viver. Ótimo ponto de vista! Parabéns!

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  6. O que seria a vida ideal ?
    Madre Tereza de Calcutá muitas vezes reclamava da falta das respostas de Deus. Sentia-se só.
    Não acredito em realização plena. Sempre falta alguma coisa. No casamento. Na profissão. Na religião....
    Viver é buscar . É a busca que nos torna vivos.

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  7. Sayonara, verdade, quando podemos escolher, nisso só já reside uma grande possibilidade de ser feliz.
    Celamar, é possivel a total realização e a total frustração num e noutro caminho.
    Meninas, agradeço os comentários.

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