sábado, 20 de março de 2010


Do outro lado da ponte da vida

* Por José Calvino de Andrade Lima

Manipulando o velho aparelho Morse, registrando as "licenças dos trens", a ansiedade pela rendição era o bálsamo da ansiedade de um dia de trabalho com as chegadas e partidas dos trens. No auge dos meus 23 anos de pouca vivência e de sonhos a conquistar, era a época do apogeu da ditadura militar. A alienação era praticamente coletiva. Parecia um mundo inimaginável e sem corrupção, sendo assunto desconhecido pela maioria. Reclamávamos sim, sobre o custo de vida e a inflação.

Passados mais de 40 anos, resolvi reviver o passado, este espaço tão importante em minha vida. Foi como penetrar no túnel do tempo e reviver todos esses momentos, sentado na mesma posição de antes, com alguns poetas e escritores, no mesmo Bar do Gordo que em nada mudou, apenas de proprietário (falecido no mês passado). Olhando para os arranha-céus e recordando as noitadas e o tempo perdido... Fiquei observando o desfile de gente com o sofrimento estampado no rosto, pessoas humildes, sem anseios e esperanças.

O cenário é o mesmo, com novos protagonistas e de tipos folclóricos diferentes. Dezenas de vendedores de relógios, CDs e mais bugigangas, estas agora importadas do Paraguai. Uma velha mulher usando um minúsculo short tenta chamar a atenção para suas guloseimas, as vendedoras de loterias desejando-nos boa sorte. Os aposentados lamentando todos os anos perdidos e injustamente não reconhecidos com seus salários de miséria, jogados a própria sorte.

Hoje, sabemos da existência de corruptos que dilapidaram nosso patrimônio, antes tão desconhecidos na época do decantado milagre econômico. As rugas, minha barba branca, a preocupação com o futuro, o medo, a violência desenfreada... denunciam, assim, que tudo mudou na minha vida e do meu Recife. Foram assim alguns lampejos de saudades de um mesmo cenário, do outro lado da ponte e da minha história, irreversivelmente tão próximo e tão distante dos amigos nunca mais vistos.


* Formado em comunicações internacionais, escritor, teatrólogo, poeta, compositor, membro da União Brasileira de Escritores, UBE-PE e rei do Maracatu Barco Virado. Como escritor e poeta, tem trabalhos publicados nos jornais: Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Folha de Pernambuco e em vários sites... Tem 11 títulos publicados, todas edições esgotadas. Em 2007, integrou-se na Antologia (Poetas Independentes).

2 comentários:

  1. Ainda que o cenário de hoje, não seja nem a
    sombra dos seus sonhos e desejos...
    Ainda que os atores dessa cena, não tenham
    lutado tanto para realmente mudar...
    São lembranças...fazem parte de ti.
    Abraços

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  2. Calvino,
    Com a sensibilidade do autêntico poeta você descreve em poucas frases o seu tempo do passado, com a chegada e partida dos trens; o seu convívio com os poetas e escritores, no Bar do Gordo, onde também observava a gente passando, com o sofrimento estampado nos rostos... e hoje, o cenário é o mesmo, com os mesmos protagonistas da gente simples na luta pela árdua sobrevivência.
    Muito bom artigo. Parabéns!
    Abraços. Paulo.

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